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Os Vertigem: a banda portuguesa que "quer sair do quadrado"

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Os Vertigem são uma banda lisboeta, formada em 2017, constituída por Ana Lua Caiano (voz), Artur Morais (contrabaixo), Inês Proença (piano e melódica) e Aliu Bai (bateria e percussão). Os quatro músicos conheceram-se no contexto do jazz e começaram a tocar juntos músicas que Ana Lua Caiano havia composto. Desde então, deram um número bastante significativo de concertos em várias salas e localidades, o que lhes permitiu experimentar novas sonoridades e arranjos e também ter novas ideias: “Ao longo do tempo, eu sinto que fomos construindo as músicas a pensar ao vivo. (…) Foi toda uma outra vertente da exploração e da construção das próprias músicas”, explica Artur Morais. Inês Proença acrescenta “Nós improvisamos muito… A estrutura e as músicas são as mesmas, só que [ao vivo] estão sempre a acontecer coisas novas” e realçam que muitas músicas evoluíram desta forma. Em 2020, ganharam o concurso “III Mostra de Bandas” e, assim, gravaram um EP, que intitularam “Cabeça Leve, Mundo Quadrado”. “Mundo Quadrado” por causa da “ideia de repetição, de sermos iguais a outros (…), de haver sempre uma rotina”, explica Ana Lua Caiano. É um Mundo “reto, se calhar repetitivo, igual” e “Queremos sair do quadrado”, declaram. A primeira faixa deste EP intitula-se “Não Te Conheço” e inicia-se com uma melodia no piano, ritmada e hipnótica, que é, posteriormente, complementada de forma harmoniosa e nada convencional pelo baixo. Depois da entrada da bateria, ouvimos a voz de Ana Lua, que nos canta sobre como nos mudamos para agradar aos outros: procuramos não os contrariar, escondemos o que pensamos e sentimos, omitimos pedidos. Noutras palavras, esta música parece descrever como nos moldamos aos outros de forma subserviente e como isso causa estranheza. A letra desta música diferencia-se da maioria das letras que ouvimos cantadas porque não se cinge a sentimentos como amor, desilusão, tristeza ou desejo. Descreve um sentimento mais complexo e matizado e fá-lo de uma maneira subtil, podendo, por exemplo, o interlocutor ser tanto um pai ou uma mãe, como um/a companheiro/a ou alguém amigo. Essa subtileza e possibilidade de múltiplas interpretações permitem que reconheçamos facilmente a vivência de uma situação semelhante e faz com que nos sintamos compreendidos e menos sozinhos. “Não Te Conheço” é, talvez, a faixa deste EP onde a letra ganha uma dimensão mais pessoal. De facto, na maioria das faixas deste EP, Os Vertigem refletem sobre problemas da sociedade, o que confere à sua música um caráter interventivo. As letras espelham um olhar atento e crítico sobre este mundo “quadrado”, apresentando uma visão muito pessoal e própria acerca de vários desafios atuais, detendo-se em temáticas como a guerra ou certos comportamentos que a tecnologia nos parece impor. Também noutro sentido as letras desta banda demarcam-se das mais convencionais: Os Vertigem não caem em lugares-comuns, rejeitam formulações previsíveis e escolhem as palavras de forma cuidada e criteriosa. “O Homem Que Avança” é o nome da segunda faixa de “Cabeça Leve, Mundo Quadrado”, onde ouvimos Ana Lua a cantar a história de um “homem sem lugar”, que, sendo perseguido, deixa o seu país sem pertences, fugindo pelo mar. É uma música sobre medo, fuga e solidão, e poderá ser uma alusão à situação desumana experienciada pelas pessoas refugiadas. Esta música começa com o piano e o contrabaixo que, em uníssono, num registo grave, tocam uma melodia circular, que faz lembrar Dead Combo, e que fica presente em quase toda a música, criando um ambiente algo enigmático e muito cool. Chamo a atenção para as melodias no piano, que têm um papel fundamental nas composições desta banda e que são elementos caracterizadores da sonoridade d’Os Vertigem, tornando-a facilmente reconhecível. A voz conduz-nos para uma secção intermédia onde o piano, a melódica, que preenche os nossos ouvidos de forma insistente, e a bateria procuram ilustrar o dramatismo da letra e, em particular, as condições adversas a que o homem está submetido. Quando a morte dá a escolher ao homem “partir sem lugar” ou “em casa morrer”, tudo musicalmente indicia um momento aflitivo: imaginamos o homem talvez em alto-mar, resistindo ao vento que o “empurra para trás” e a fugir da vida que abandona, em busca de um novo lugar para si. Esta faixa termina com um bonito coral. A faixa seguinte, “Hábitos Corcundas”, é uma reflexão musicada sobre as consequências da utilização da tecnologia na vida das pessoas. Uma vez mais, o piano inicia a música com um riff brilhante, que foge ao tonalismo, e segue-se um momento em que a voz, com um suporte harmónico muito ritmado e reduzido, anuncia o tema desta terceira faixa. A banda expressa, de maneira muito elegante, o alheamento das pessoas, consequente da utilização excessiva da tecnologia, em relação aos seus próprios problemas, experiências e vidas: a letra descreve que as pessoas “olham para ecrãs e vivem outras vidas”, “apagam os seus problemas e vivem outras histórias” e “não vivem onde estão”. Nesta música, algumas das melodias cantadas, entre outros elementos musicais, tornam clara a influência do jazz no trabalho d’Os Vertigem. No entanto, os músicos consideram que a influência da sua formação em jazz nas suas composições é involuntária, tal como descreve Ana Lua: “Compus [as músicas que começamos a tocar] não a pensar em jazz, ou seja, compus a pensar em qualquer coisa. (…) Mas quando juntamos quatro músicos de jazz é normal que vá para esses lados, mesmo que não tenha sido essa a minha primeira intenção”. No entanto, os músicos admitem que cada um deles tem muitas influências para além do jazz: desde Zeca Afonso, Sérgio Godinho e Fausto, a Nina Simone e a Cesária Évora, Élis Regina, Chico Buarque e Caetano Veloso, não esquecendo música africana, rock, música popular e clássica. Talvez por isso, a música desta banda acabe por ser difícil de categorizar dentro dos géneros e subgéneros habituais, uma vez que a conjugação das experiências e influências de cada um dos elementos permite a construção de uma sonoridade muito própria e nova no panorama musical português. Os Vertigem, que acreditam que “aquilo que define a música concretamente é a interação entre os músicos”, descrevem o seu processo de composição como sendo exaustivo e muito orgânico - as músicas vão mudando, transformando-se. Segue-se uma faixa triste, sobre guerra, que se intitula “Atacavam”. Esta música é sobre medo e coragem, denuncia a ausência de motivos razoáveis para combater no contexto de guerra e disseca a lógica da luta pela sobrevivência: “Atacavam até não poder, esperando um dia atacados não ser”. Nesta música em particular, onde Os Vertigem partem do ponto de vista de um soldado, é tangível o caráter interventivo da música deste grupo. Depois do refrão, que se centra numa melodia com muita força, a vocalista canta sobre a perda de individualidade dos soldados, que têm de prescindir das suas ideias, amores, vidas, medos, vontades, devotando-os ao esquecimento. O EP termina com a faixa “A Culpa É Do Botão”, que faz notar que hoje um número infindável de processos pode ser desencadeado com o premir de um botão. Parece refletir, de forma irónica, sobre as responsabilidades do ser humano neste mundo mecanizado e repleto de “botões”. Termina com sons de trânsito. Deparei-me com Os Vertigem por acaso, algures no início deste ano. Senti-me, desde logo, seduzida pelas melodias enigmáticas do piano, pelas palavras reflexivas de Ana Lua, pelos arranjos visivelmente trabalhados. Era caso para celebrar as pequenas aleatoriedades da vida: Os Vertigem trazem-nos algo de muito especial e que deve ser partilhado. Em julho deste ano, Os Vertigem concederam-nos uma entrevista, que gravamos e que em baixo disponibilizamos. As citações apresentadas neste artigo foram transcritas dessa entrevista. ​ ​ ​ Sara Cal ​ ​


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