Pertencer, através da Música
A fonte está na fotografia. O Ruido Mudo não detém qualquer direito sobre a fotografia
A música parece ser daquelas componentes da nossa existência que jamais compreenderemos completamente. Estendendo o seu carácter inefável, contudo e apesar disso, apanha qualquer pessoa no seu abraço, de uma maneira ou de outra. Faz parte do seu charme.
Abraça até quem afirma não gostar de música (tal coisa que, sinceramente, parece que jamais compreenderei), pois é realmente impossível escapar ou sequer distanciar-nos de todas as suas formas e implicações no mundo que nos rodeia. No caso de tentarmos fazer ouvidos moucos ao rádio no autocarro, à melodia ambiente nos elevadores, não conseguimos abafar the sound experience do trânsito – como lhe chamava Cage –, ou a vida quotidiana lá fora, e muito menos os sons e cantares da Natureza. Enfim, a Música está tão impregnada no nosso mundo que é impossível que não nos condicione de alguma forma.
E quer esta seja somente aquilo que singelamente é e não precise de legendas, ou quer seja uma forma de recordar que sobrevivemos à larga noite para enfrentar um novo dia, mais que condicionar-nos, significa algo para nós. E este mês, porventura, significa algo mais.
A música produzida pelo ser humano, regra geral, transporta o melhor da nossa espécie. Transforma-se num fenómeno com a capacidade de começar a reparar os danos igualmente por nós infligidos. Através dos seus sons, meio que conserta a destruição e divisões que provocamos a nós mesmos. Quiçá isto se deva a que música traz consigo o poder da representatividade, traz o reconhecer-se nela, a hipótese de alargar horizontes, de enviar coragem e amor a quem a ouve. Oferece pertencer. E como disse Clara Não, “tudo o que o ser humano mais quer é pertencer” “neste mundo de caos” – parece-me haver sabedoria nestas palavras; um autoconhecimento fruto de uma reflexão que nem sempre temos a coragem de fazer…
Sem dúvida ser diferente é belo, mas nem sempre é a coisa mais fácil do mundo. E este ser diferente vem em muitas formas:
Enquanto estudante num país estrangeiro, foi-me apresentada uma dimensão de ser diferente. É bonito, mas também é uma das partes mais difíceis de toda esta… experiência… de andar pelo mundo. O não retornar a casa durante meses, o não poder sequer falar português de outra forma que não seja em curtas chamadas telefónicas com a família, vai esculpindo um pequeno buraco sem darmos conta. E, nesse contexto, escutar sem qualquer tipo de aviso Madredeus ou Amália Rodrigues no ar, tem um efeito quase paralisante: uma sensação que passa despercebida ao cérebro, antes de este processar e soltar um suspiro que vem com esse sentimento de pertença. Faz pensar, de uma perspetiva mais holística, talvez pessoal, a soberania de temas como a saudade no fado atualmente. Porque o sentes na pele. Porque ouvir essas músicas reparou uma pequena fissura dentro de mim, ainda que tão-só por meros minutos. Um pequeno muy grande sentimento cálido trazido por estas canções.
Por outro lado, este sentimento de pertença na música traz algo a quem, sendo diferente, por vezes parece perder a batalha contra a sociedade opressora e julga o pertencer perdido; a quem vê o seu direito a viver [em paz] ou já retirado ou bastante precário, ao andar pela rua, ao ver as notícias ou ainda dentro da sua própria casa…
Nesse então, a música, e a voz que conta a história, assumem o papel de uma voz amiga e compreensiva para quem não entende a si mesmo… ou as reações dos outros. É uma voz que diz que está tudo bem e que tudo se resolverá. São muitas vozes que dizem que não se está só. Na música encontramos refúgio e forças para este mundo de caos.
A música tem tanto poder sobre nós que claramente não é por acaso que existe a queer music therapy model, ou modelo de musicoterapia queer. Se eu, considerada adulta a viver no estrangeiro e de orientação sexual assumida e com a qual estou pelo menos quase conforme, sinto esta paralisante sensação concedida pela música, imagino alguém jovem de 15 anos, lutando para compreender a sua própria sexualidade sabendo que a sua casa não é um lugar seguro.
E vemos como, mais uma vez, se levanta a imperativa de que a música também se define como uma arma. Uma arma contra as desigualdades e opressões socias que podemos levantar ao som de uma bandeira. Uma arma pelo poder das nossas vozes cantando, das nossas palavras ou aproveitando a visibilidade enquanto artista para professar sonoramente as estupidezes da sociedade, como, recentemente, levando Drag Queens a palco – louvor a Lizzo e Miley Cyrus – ou abertamente lutar contra leis anti-LGBTQ+ – louvor a The 1975, Sam Smith e muitos outros artistas, um pouco por todo o mundo.
Atravessando tantos géneros musicais, a esperança e a luta perseveram.
Por mais que o mundo esteja caótico, contamos com algo que é inerentemente Bom e Belo, e a que podemos recorrer. A música é uma arma de intervenção, mas também é casa. A música tem o poder de unir. A música torna o mundo mais fácil de aguentar.
Mariana Rodrigues
P.s.: Este artigo foi escrito ao som da playlist “Pride Parade” do Ruído-Mudo. Ainda que tenha sido criada há um ano pela equipa, retorno a ela. Enquanto registo estas linhas em particular, escuto “Go West”, de Pet Shop Boys, e é impossível não reconhecer o sentimento, sobretudo com versos como “(Go west) Life is peaceful there / (…) We’ll be what we want to be”.
Referências no texto, por ordem de menção:
Jankélévitch, V. (1983) A música e o Inefável. 2018. Edições 70
Youtube (2007) John Cage about silence. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pcHnL7aS64Y
Clara Não (2023) ‘Sobre a necessidade de pertença neste mundo de caos’. Expresso. 20 março. Disponível em: https://expresso.pt/autores/2022-12-19-Clara-Nao-225e2393
Boggan, C. E, Grzanka, P. R, Bain, C. L. (2017) ‘Perspectives on Queer Music Therapy: A Qualitative Analysis of Music Therapists’ Reactions to Radically Inclusive Practice’. Journal of Music Therapy, 54(4), 375–404. Disponível em: https://doi.org/10.1093/jmt/thx016
Playlist Pride Parade: https://open.spotify.com/playlist/5F4d1MwiEmhWxvdLcBmMr8?si=6e91ef2b75354b8c