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Musicoterapia neurológica à espera nas trincheiras

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Teremos deixado ao olvido que, ao longo da História ocidental, a música mais que embelezar o tempo ou contar alguma mensagem política, apresenta também uma faceta que pretende alterar o status quo emocional humano? [Se é que tal bacorada lhe podemos chamar.] Teremos esquecido que em tempos antigos a música era usada para acalmar e clamar as almas para a batalha? Que detinha tamanho poder sobre quem a escutava que alterava o modo destes reagirem e atuarem, consoante o trecho musical ouvido? Que era pensado que músicos eram capazes de realizar milagres? Que a música tinha o poder de curar doenças, purificar corpo e espírito? [1] Ora, se a música sempre deteve tamanho poder, não estaremos a descurar e subestimá-la nos dias que correm? Não terá esta mais benefícios para quem a escuta do que lhe estamos a permitir dar?


Claramente que esta função não desapareceu do nosso dia-a-dia, no entanto parece algo latente, ou talvez melhor dizendo, aquém do seu potencial. Porém, no seio do mundo científico, muitos avanços transcorrem. E há que dar-lhes mais crédito porque, apesar destes significativos avanços, poucos se veem implementar na nossa sociedade.


Apresento-vos a musicoterapia neurológica:


A Associação Americana de Musicoterapia (para escolher uma) explica musicoterapia como o uso clínico, evidencio-científica e interventivo de música, com objetivos terapêuticos, realizado por um profissional qualificado. Acontece que existe uma rama da musicoterapia que se aplica à neuro-reabilitação – uma rama abraçada e defendida pela World Federation for Neurorehabilitation que, precisamente, está a inundar o mercado científico.


Hallam et al. (2012) define a música como uma linguagem sonora de estrutura temporal que estimula o cérebro humano a nível sensitivo, motor, percetivo-cognitivo e emocional, estimulando e integrando vias neurais de uma forma bastante específica à música. Ora, se a música provoca tão complexo processo a nível cerebral, gente extremamente inteligente colocou primeiro como hipótese e posteriormente demonstrou que intervenções de carácter musical melhoram memória verbal, atenção do paciente, bem como humor e qualidade de vida, em casos tão extremos como pessoas que sofreram de acidentes vasculares cerebrais.[2]


Mais recentemente, tem-se explorado de igual forma o campo de reabilitação de lesões cerebrais traumáticas (Traumatic Brain Injury), que segundo Siponkoski et al. (2020) afeta mais de 50 milhões de pessoas a nível mundial. Neste contexto, a musicologia neurológica apresenta estudos tão diversamente focados como a afetação de funções executivas e neuroplasticidade estrutural pré-frontal, parâmetros fisiológicos do organismo, comportamento e recuperação emocional, reconstrução estrutural do connectome – vias/conexões neurais do cérebro.


Dada a natureza desta rama das ciências musicais – e da música, mais concretamente –, estimulam-se diferentes funções do sistema nervoso; conta-se, também, com uma participação ativa por parte do paciente, o que acaba por fomentar de igual forma a vigilância do mesmo e a integração social do paciente. Assim, foi demonstrado que, em pacientes de lesões cerebrais traumáticas, a musicologia neurológica melhora funções executivas, aumenta o volume de massa cinzenta de parte do cérebro (Siponkoski et al. 2020); de uma diferente investigação, testemunhos de cuidadores de pacientes reportaram inibição de comportamento impulsivo, melhora de atenção e memória (Siponkoski et al. 2022). Para trocar parâmetros fisiológicos por miúdos: em Froutan et al. (2020), o paciente escuta um áudio de mensagem positiva de um familiar querido, com música instrumental de Arnd Stein de fundo, e foram conseguidas melhorias significativas a níveis de pressão arterial, de respiração e pulsação do paciente. Diversas investigações científicas sugerem ainda que a utilização de musicoterapia neurológica pode beneficiar um dos mecanismos biomecânicos mais essenciais ao ser humano, e que é tão afetado em situações de lesão cerebral traumática: o andar. A terapia através da música pode assim beneficiar a velocidade, o alcance do passo e a cadência do andar (Mishra et al. 2021).


E agora coloca-se a pergunta: com tantos benefícios trazidos pela música, por que não vemos o mundo da musicoterapia mais representado em instituições, em hospitais, em clínicas...? Por que quase não se fala desta área? Para não mencionar que, contrariamente a muitas outras terapias usadas hoje em dia, a musicologia neurológica é uma terapia de baixo custo – um facto que é completamente irrelevante para a nossa comunidade capitalista (denote-se a ironia) – e além de que, até ao momento, não exibe nenhum efeito negativo consequente da mesma. Não que outras terapias e tratamentos de reabilitação neurológica devam ser erradicados! São extremamente necessários… Mas talvez nem sempre. Talvez haja pacientes que possam ser intervencionados com técnicas menos invasivas e que, em realidade, acompanham o ser humano desde tempos imemoráveis. Perdão, talvez não; foi já demonstrado. Sem dúvida há necessidade e espaço para muita investigação científica adicional, no entanto, quiçá devíamos começar a dar mais crédito à música e ao mundo musical do que atualmente concedemos, e permitir que saiam das trincheiras para lutar pela nossa saúde.




Mariana Rodrigues

 




 

Bibliografia:

American Music Therapy Association. (2005) What is Music Therapy? Disponível em: https://www.musictherapy.org/about/musictherapy/ Consultado em 12/03/2023


Froutan, R., Eghbali, M., Hoseini, S. H., Mazloom, S. R., Yekaninejad, M. S., & Boostani, R. (2020). The effect of music therapy on physiological parameters of patients with traumatic brain injury: A triple-blind randomized controlled clinical trial. Complementary therapies in clinical practice, 40, 101216. https://doi.org/10.1016/j.ctcp.2020.101216


Grout, Donald J. e Palisca, Claude V. (1994) História da Música Ocidental. 2007. Lisboa: Gradiva


Mishra, R., Florez-Perdomo, W. A., Shrivatava, A., Chouksey, P., Raj, S., Moscote-Salazar, L. R., Rahman, M. M., Sutar, R., & Agrawal, A. (2021). Role of Music Therapy in Traumatic Brain Injury: A Systematic Review and Meta-analysis. World neurosurgery, 146, 197–204. https://doi.org/10.1016/j.wneu.2020.10.130


Raglio, A., Attardo, L., Gontero, G., Rollino, S., Groppo, E. and Granieri, E. (2015). Effects of music and music therapy on mood in neurological patients. World J Psychiatry 5, 68-78.


Särkämö, T., Ripollés, P., Vepsäläinen, H., Autti, T., Silvennoinen, H.M., Salli, E., et al. (2014). Structural Changes Induced by Daily Music Listening in the Recovering Brain after Middle Cerebral Artery Stroke: A Voxel-Based Morphometry Study. 8.


Särkämö, T., Tervaniemi, M., Laitinen, S., Forsblom, A., Soinila, S. and Mikkonen, M. (2008). Music listening enhances cognitive recovery and mood after middle cerebral artery stroke. Brain 131, 866-876.


Sihvonen, A. J., Siponkoski, S. T., Martínez-Molina, N., Laitinen, S., Holma, M., Ahlfors, M., Kuusela, L., Pekkola, J., Koskinen, S., & Särkämö, T. (2022). Neurological Music Therapy Rebuilds Structural Connectome after Traumatic Brain Injury: Secondary Analysis from a Randomized Controlled Trial. Journal of clinical medicine, 11(8), 2184. https://doi.org/10.3390/jcm11082184


Siponkoski, S. T., Koskinen, S., Laitinen, S., Holma, M., Ahlfors, M., Jordan-Kilkki, P., Ala-Kauhaluoma, K., Martínez-Molina, N., Melkas, S., Laine, M., Ylinen, A., Zasler, N., Rantanen, P., Lipsanen, J., & Särkämö, T. (2022). Effects of neurological music therapy on behavioural and emotional recovery after traumatic brain injury: A randomized controlled cross-over trial. Neuropsychological rehabilitation, 32(7), 1356–1388. https://doi.org/10.1080/09602011.2021.1890138


Siponkoski, S. T., Martínez-Molina, N., Kuusela, L., Laitinen, S., Holma, M., Ahlfors, M., Jordan-Kilkki, P., Ala-Kauhaluoma, K., Melkas, S., Pekkola, J., Rodriguez-Fornells, A., Laine, M., Ylinen, A., Rantanen, P., Koskinen, S., Lipsanen, J., & Särkämö, T. (2020). Music Therapy Enhances Executive Functions and Prefrontal Structural Neuroplasticity after Traumatic Brain Injury: Evidence from a Randomized Controlled Trial. Journal of neurotrauma, 37(4), 618–634. https://doi.org/10.1089/neu.2019.6413


Soto, D., Funes, M.J., Guzmán-García, A., Warbrick, T., Rotshtein, P. and Humphreys, G.W. (2009). Pleasant music overcomes the loss of awareness in patients with visual neglect. Proc. Natl. Acad. Sci. U. S. A. 106, 6011-6016.



[1] (Grout e Palisca, 2007)

[2] Mencionado em Siponkoski et al. 2020


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