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Música, Censura e Revolução

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“A Poesia está na Rua” de Vieira da Silva


A propósito de abril e do dia 25 que se aproxima, ocorreu-me escrever sobre como a música de intervenção, apesar de vigiada e controlada pela censura do Estado Novo, cresceu e alimentou a Revolução de 1974, sendo uma “arma” nessa e nas lutas que se seguiram.

A partir de 1926, a censura foi introduzida na imprensa e esta prática alastrou-se à literatura, ao cinema, às artes plásticas, ao rádio e à música. Na Constituição de 1933, instituiu-se a censura e, a partir de 1940, foi centralizada no Ministério do Interior[1]. Ao longo de décadas, a censura apreendeu discos, limitou a realização de espetáculos, e houve perseguições a músicos conotados como opositores ao regime[2]. Foram décadas de versos riscados, palavras alteradas e ideias proibidas.

A subida de Marcelo Caetano ao poder, em 1969, criou a expectativa de uma maior abertura política[3]. Durante a Primavera Marcelista, foi possível editar alguns discos emblemáticos da música de intervenção portuguesa, o que foi fundamental para a difusão destas canções. Em 1971, foram editados os discos Os Sobreviventes de Sérgio Godinho, Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades de José Mário Branco, Cantigas do Maio de José Afonso e Gente de aqui e de agora de Adriano Correia de Oliveira. Talvez devido a esta produção e divulgação de música que carregava consigo críticas codificadas ao Estado Novo, em 1972, a Direção-Geral de Informação emitiu uma carta que proibia determinado tipo de canções[4]. Foi promulgada uma nova Lei da Censura, chamada Lei do Exame Prévio, que exigia que as letras dos discos fossem analisadas antes da gravação das respetivas faixas[2]. Durante a Primavera Marcelista, a censura foi parcialmente remetida para o domínio comercial ou editorial, na medida em que estas entidades exerciam uma espécie de autocensura, para evitar perdas financeiras[4].

A música de intervenção continuou a correr o país, apesar destas leis mais restritivas, recorrendo, por exemplo, à circulação clandestina de discos e cassetes[3]. Na década de 1970, a música “Tourada” de Fernando Tordo e Ary dos Santos, que detinha uma forte mensagem contra o regime, foi apresentada na edição de 1973 do Festival da Canção da RTP, tendo conquistado o primeiro prémio[2].

Um momento particularmente simbólico teve lugar a 29 de março de 1974, no dia em que se realizou o I Encontro da Canção Portuguesa, organizado pela Casa da Imprensa. Nessa noite, no Coliseu dos Recreios, atuaram várias figuras ligadas à música de intervenção- Manuel Freire, Ary dos Santos, José Jorge Letria, Adriano Correia de Oliveira, Zeca Afonso, entre outros.

Os artistas procuraram contornar as proibições impostas pela censura, que impediu que Fanhais e Sérgio Godinho atuassem e proibiu total ou parcialmente músicas. Como que por sorte, a censura autorizou que Zeca Afonso cantasse e tocasse “Grândola, Vila Morena”, música editada três anos antes, no álbum Cantigas de Maio. De uma maneira que já nos é conhecida, os músicos em palco deram os braços, movimentando-se da direita para a esquerda ao ritmo da música e o público, cantando, reproduziu os movimentos dos artistas[5].

Sensivelmente um mês depois, no dia 24 de abril de 1974, Zeca Afonso jantava com o amigo Mário Reis na Cervejaria Trindade. Uma vez que o músico expressou alguma preocupação, visto que a PIDE havia estado à sua procura, Mário Reis ofereceu-lhe dormida. Acordaram os dois de madrugada com um bater de porta, receando que a PIDE os tivesse localizado. Mas era um amigo, avisando que as tropas estavam na rua, numa altura em que Zeca Afonso nem imaginava que a música “Grândola, Vila Morena” tinha sido uma das senhas para desencadear a Revolução dos Cravos[6].

O 25 de abril devolveu as liberdades perdidas e ofereceu muitas mais. A censura foi logicamente abolida e a música de intervenção inundou os meios de comunicação social[4]. As preocupações e reivindicações expressas nas músicas acompanharam o desenvolvimento do próprio movimento social[7]: partindo da exigência das liberdades cívico-políticas roubadas pelo Estado Novo, espalharam-se palavras cantadas contra a guerra colonial, injustiça social e exploração.

O papel da música de intervenção no 25 de abril não se cingiu aos avisos sonoros que anunciaram a Revolução. De facto, muitas destas canções, elaboradas num clima de controlo e repressão, contendo frases codificadas e palavras subtis, denunciavam a falta de liberdade e a pobreza, criticavam a guerra e a exploração e mobilizavam quem desejava mudança. Estas foram as canções que prepararam a Revolução.

Sara Madeira Cal

[1] Fonte: Museu do Aljube https://www.museudoaljube.pt/doc/censura/

[2] Fonte: Jornal Público https://www.publico.pt/1999/04/25/jornal/interdito-a-todas-as-idades-132672

[3]Fonte: Artigo “FESTIVAIS DA CANÇÃO: MÚSICA, MEDIA E CENSURA DURANTE OS REGIMES AUTORITÁRIOS EM BRASIL E PORTUGAL” de José Fernando Saroba Monteiro

https://www.encontro2018.rj.anpuh.org/resources/anais/8/1529341119_ARQUIVO_Artigo_FestivaisdaCancao-Musicamediaecensura_JoseFernando.pdf

[4] Fonte: Artigo “Sons de Abril: estilos musicais e movimentos de intervenção político-cultural na Revolução de 1974” de Maria de São José Corte-Real http://www.rpm-ns.pt/index.php/rpm/article/viewFile/92/96

[5] Fonte: RTP https://www.rtp.pt/noticias/estorias/grandola-a-cancao-que-a-censura-deixou-passar_n730159

[6] Fonte: Livro “José Afonso, o rosto da utopia” de José A. Salvador

[7] Fonte: Livro “História do Povo na Revolução Portuguesa - 1974-75” de Raquel Varela


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