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Estrangeirismos e a partilha musical fora das terras de El-Rei

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Como se apreende uma canção?

Caro leitor, se essa pergunta já lhe parece demasiado complexa para um começo de uma breve e aleatória crónica, para a qual reservou apenas uns breves minutos para (a) ler tranquilamente, sem necessidade de grandes reflexões, pergunto-lhe ainda: como se apreende uma canção estrangeira, num idioma que contém algumas parecenças à língua-mãe porém que não se domina, cujo efetivo se resume a voz tenor e piano… numa sessão em que o público se encontra debaixo e dentro de água? Supomos nós, leigos ao evento, que os ouvintes tenham no mínimo auscultadores e que a música que uma das fãs parece cantar ao mesmo tempo que o vocalista não seja transmitida apenas através da parede translúcida do túnel subaquático.

Enfim, escutar música estrangeira não nos é novidade, certamente.

No mundo da apelidada música clássica, nenhum dos grandes cânones é português. A música da nossa pátria, neste campo musical, parece ter-me sido introduzida, nos meus tempos de educação musical, enquanto algo que também existia, para demonstrar que nós também o fazíamos – sendo (em) muito semelhante à abordagem infringida a compositoras, musicólogas e instrumentistas. Talvez essa abordagem pedagógica seja uma tentativa tardia de combater o esquecimento ou a falta de marketing ao longo da História, que nos coloca como numa nota de rodapé num livro de história de música.

Todavia, retomando o fio à meada, na música instrumental (sobretudo a dita “absoluta” instrumental), a nacionalidade ou língua falada pelo compositor não é, à partida, um fator incapacitante para o ouvinte. Isto na medida em que este é capaz de apreender uma obra musical, e tal deve-se precisamente à ausência de letra na mesma.

Se, por outro lado, for considerado o mundo radiofónico (não clássico), na atual época em que tanto se faz ouvir música cantada em português quanto em inglês (maioritariamente), esta barreira (ou ruído) imposta à compreensão e apreensão musicais é algo bem mais significativo.

E agora, caro leitor, se ainda não lhe ocorreu até então, considere quem da população portuguesa não é versado na língua inglesa – tenham estes atingido a idade adulta, ou não… O que é que se escuta nesses casos?

Ocorrem fenómenos dignos de serem sublinhados como o famoso “cavalinho na feira a comer”. Para as raras almas que não estão a par (e perdão se for o caso), trata-se da apropriação portuguesa de um verso da música “Down Under”, da banda de rock australiana Men At Work, que, aliás, poderá ser encontrada na plataforma Youtube, através da pesquisa sugerida pela própria: “cavalinho na feira a comer música original”. E apesar de não ter intenção de retirar qualquer crédito a tais fenómenos, dirijo a vossa atenção a fatores de componente musical como a harmonia, ritmos, o próprio género e estilo musical, mas sobretudo para a supremacia da melodia vocal. Isto porque, apesar de não se entender o que a/o vocalista diz, percebe-se, sim, o contorno melódico e os seus hooks. Razão pela qual, apesar da compreensão e domínio nulos da minha pessoa quanto à língua inglesa, eu fazia sessões musicais no carro, quando tinha 5 anos, quase impossíveis de serem ouvidas (pela sua exclusividade, não pela minha incapacidade de afinação, ou outras questões auditivas) ou, num caso já mais recente, ao escutar uma canção em que, na melhor das hipóteses, o meu entendimento desta lírica italiana em particular alcançaria os 15%, a escuta não me foi desagradável ao ouvido. E atente-se que não a ouvi novamente pelo curioso facto deste público se encontrar submerso: o timbre, o já mencionado contorno melódico, o seu carácter repetitivo, as reduzidas variações entre pequenos melismas e vocalizos versos parte quase em estilo recitativo, ou ainda a característica acústica do piano e os pequenos fragmentos em que suspende o acompanhamento e permite a voz a solo, deixam o meu ouvido confortável e algo interessado. E, para ser a primeira música italiana sugerida por alguém que conheci e dessa língua nativo, o mistério submarino de BLANCO, Paraocchi e da sua letra (cujo significado até ao momento ainda me é desconhecido)… fazem-me ver que não, não compreendo a música. Mas isso não significa que não a possa ouvir, ir aprofundando a minha análise musical (ou inclusive de léxico), ou até eventualmente gostar… ou significa?

Todavia, confuso e cansado leitor, se isso se aplica de não português para português, como se processa ao revés? Como posso compartilhar eu o “Grão da mesma Mó”, de Sérgio Godinho – perdão pela escolha, mas, por alguma desconhecida razão, esta canção estava a pressionar tanto a minha mente que o peso nas teclas foi quase involuntário –, ou como posso eu apresentar eu o rock português, o alternativo, cantautores ou… (e sim, sei que estava à espera disto, suspendido leitor, e aí vem ele:) como dou eu a ouvir Fado a não portugueses?

Confesso que até agora apenas tenho escutado “Verdes Anos”, por Carlos Paredes, mas certamente serei quase expatriada, desterrada e desgraciada se, no meu cargo de embaixadora portuguesa honorária, em alguma troca casual de pedaços representativos de cultura, não der a escutar Amália Rodrigues.

E aí, cansado leitor, refrear-me-ei de apresentar um contexto e traduzir a letra? Será possível para alguém não nascido em Portugal, ou ser português emigrante de 1ª, 2ª ou 3ª geração, que não ouviu histórias e/ou conspirações, que não sabe que o Fado não é só dor mas que tanta dor carrega, e que nunca ouviu as notas expelidas de uma guitarra portuguesa, que não entende o poema e que nunca ouviu o grito “Há fadista!” em plena tasca… será que poderá compreender a essência do Fado?

E será que um “não” da sua parte, patriota e purista leitor, me impedirá de partilhar?

Mariana Rodrigues


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