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Estórias para serem ouvidas numa Casa de Fados

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Foi antes da pandemia que conheci uma casa de Fados e, pela primeira vez, tive a sorte de ouvir grandes músicos. Ouvi, especialmente, durante essa noite, uma frase: “o Fado aconteceu”. Éramos 4 amigos e um deles conhecia a fadista que ia cantar na casa de fado Devagar Devagarinho, que fica na esquina entre a Travessa Larga e a rua do Cardal de São José. Não é um local grande, ao entrar vemos o balcão e a cozinha de um lado, do outro as mesas, e ao fundo umas escadas. Lá em cima está uma sala com mais mesas, mas com espaço no meio. As paredes estão cobertas de molduras e quadros de fadistas e músicos queridos da Casa e do mundo do Fado. Desde logo estabeleceu-se uma proximidade com essa gente e começámos por comer ao pé da entrada, em frente à fadista e ao guitarrista que tocaram durante o nosso jantar. Foi bonito ouvir de perto e ver como tocavam, mas mal sabia o quão bonita ia ser essa noite.


Algumas pessoas iam saindo e outras iam entrando. A fadista dizia-nos para ficarmos, que esperássemos, porque o fado ia acontecer nessa noite. O jantar caiu-nos bem e a bebida também, fomos bebendo e conversando, e mais pessoas foram entrando. Assim pela meia-noite, a cozinha já tinha fechado, só servia uns aperitivos, ou uns enchidos para irmos saciando a gula da meia-noite. A fadista aconselhou-nos a ir lá para cima. Ao subir as escadas com os copos e o jarro de vinho na mão, deparámo-nos com imensa gente naquela sala pequena, que mesmo assim tinha espaço no meio. Sentámo-nos na única mesa que havia disponível, com o vinho na mão, sorrisos nas caras e alguma curiosidade, ao ver dois instrumentistas no centro da sala.


Ouvimos um murmúrio de um senhor que estava sentado numa mesa ao fundo, e que parecia ser alguém do público; não evidenciava que era fadista, ou que ia cantar. No entanto, dirigiu-se aos músicos e lançou-se um acorde na viola de Fado e um tremelique na guitarra portuguesa, e esse senhor levantou-se e começou a cantar. Música após música, outra pessoa ia-se levantando, ora em duetos, como uma desgarrada, ora sozinha a cantar canções não conhecidas. Cada um trazia a sua forma de cantar, o seu alento naquelas palavras tão bonitas que nos fizeram sentir parte daquilo mesmo como meros espectadores. Decidi sacar uma caneta e escrever no papel parafinado da mesa, e num guardanapo, as letras que nos diziam como se fossem uma estória, queria deixar escrito para ir lendo quando quisesse e lembrar-me daquelas pessoas. Entre os muitos fados e histórias que se cantaram, ouviu-se o fado “Maria Alice”, “Bairros de Lisboa”, “Fado Voltaste” e “Dentro da Tempestade”.


Houve uma altura em que tudo acalmou, os instrumentistas saíram, algumas pessoas dispersaram, porém não para ir embora; para encher os jarros e os copos de barro com a água de baco, pois nesta altura já não era mais vinho. Entretanto, subiram dois músicos e sentaram-se no centro da salinha. Primeiro riram, falaram com as pessoas que conheciam - estavam sempre à vontade, como um evento familiar - e depois tocaram. Ao ouvi-los não quis acreditar, os acordes e as melodias eram tão rápidas e pareciam mais complexas, porém eram tão fluídas. As transições de acordes e até mesmo, musicalmente, as mudanças harmónicas aconteciam mais vezes do que o suposto, e esta forma de tocar fez-me lembrar um pouco a dupla Carlos Paredes e Fernando Alvim. Obviamente não tão literal, mas com aquele estilo que vagueia e que sempre retornará a um repouso. Quando deixei de olhar para as mãos de cada um vi que eram Ângelo Freire, guitarra portuguesa, e Pedro Soares, viola de fado. Quando dei por mim estava em pé a tentar perceber o que estava a acontecer e, entretanto, o Ângelo vira-se para mim enquanto toca, e diz: “é mesmo verdade, não é um vídeo”.


Sucederam-se mais canções e músicas tão bonitas que fizeram o tempo passar. Como o Fado das Horas, que o Ângelo tão bem cantou. É um Fado de Maria Teresa de Noronha que nos fala sobre a fugacidade do tempo e com quem o tempo desejamos passar:” Chorava por te não ver / Por te ver eu choro agora / Mas choro só por querer / Querer ver-te a toda a hora / … / Nas horas da nossa vida / Cada hora é um minuto”. E, passado esse minuto, saímos em plena madrugada, umas horas antes de o sol nascer. A Avenida da Liberdade estava calma, só havia luzes.


A partir deste momento, comecei a sentir um gosto pelo fado e pela sua poesia que fez com que voltasse, nos anos seguintes, a ir às casas de fado. Mesmo depois da pandemia continuei a ir, não tão frequentemente, mas algumas vezes, e foram sempre muito boas. Compreendo que não costumamos ir ouvir fado, ora por razões económicas, ora pelo turismo que está muito presente nos bairros de Lisboa. E é interessante verificar que no centro de Lisboa, mais concretamente nos bairros de fado, existem vários alojamentos locais, airbnb, lojas turísticas, prédios comprados por estrangeiros que de certa forma impulsionaram os bairros, mas fizeram com que as populações que ali viviam, que eram “fadisticamente” ativas, se dispersassem pela periferia de Lisboa. As casas de fado permaneceram e, maioritariamente, vivem só disso: do turismo e do público estrangeiro; e certamente adaptaram-se a este ambiente.


É importante a divulgação internacional do Fado e foi graças a vários artistas conceituados que o Fado foi tocado em Munique, Tóquio, Nova York, Sidney, entre muitos outros lugares, e, por consequência se tornou, em 2011, Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO. Hoje é conhecido e ouvido em todo o mundo.


As casas de fado são um lugar de música e sociabilidade, muito dinâmicas e com pessoas de todo o mundo. De facto, apesar de os estrangeiros não perceberem a letra, eles relacionam o que sentem e percebem. No entanto, não é isso que está em causa, mas sim: quem vai ouvir as estórias que os fadistas nos contam se não perceberem português? Em janeiro fui ao Povo assistir com uns amigos a novas estórias, o fadista perguntou se alguém falava português e ficou feliz de nos ver, e disse: “é tão bom cantar para quem me compreende”; e cantou com mais alegria.


Convido os leitores a darem um pulo aos bairros de fado, nem que seja para beberem uma ginjinha à porta. Os músicos vão agradecer e sorrir se souberem que estão ali para ouvirem as suas estórias.



Miguel Alves




Pintura:

Decadência Outonal / Fadista, 1943, óleo sobre tela, 49,5cm x 45cm

 

Fonte:

Comissão Nacional da UNESCO, Ministério dos Negócios Estrangeiros, “Fado, Canção Urbana Popular de Portugal”, unescoportugal.mne.gov.pt, 20/03/2023, https://unescoportugal.mne.gov.pt/pt/temas/proteger-o-nosso-patrimonio-e-promover-a-criatividade/patrimonio-cultural-imaterial-em-portugal/fado



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