De Black Sabbath a Billie Eilish: jornadas de um metaleiro pelo mundo da pop
A minha obsessão pelo hard-rock e pelo heavy-metal teve início quando, em 2011, joguei pela primeira vez “Guitar Hero II” (l. 2006) na Playstation 2 de um amigo. Tendo sido criado a música cubana e erudita – principalmente clássica, mas também romântica –, o som distorcido da guitarra elétrica, as linhas vocais carregadas de energia, as batidas fortes e rápidas da bateria e a própria imagética das bandas e dos artistas que apareciam no ecrã – para além, claro, da adrenalina causada pelo jogo em si (o ato de carregar em botões e a concentração e coordenação motora que isso exige) –, tudo isso me causou verdadeiros arrepios. Foi uma revelação: soube, nesse momento, que o rock era o meu mundo, o meu “habitat natural”, e vários eventos a partir desse ponto vieram confirmar esta “epifania”, entre os quais saliento a primeira das inúmeras vezes que, com oito ou nove anos, vi o filme “School of Rock” (r. Richard Linklater, 2003) no canal Hollywood, e os concertos de rock e metal a que tive o prazer de assistir (Guns n’Roses, Slash featuring MKC, Bruce Springsteen, Rolling Stones, Iron Maiden, Slipknot, Gojira, Lamb of God, Stone Sour, Trivium, Slayer, Foo Fighters, entre outros).
Foi, portanto, por esta altura que me comecei a aventurar por estes caminhos turbulentos, ouvindo bandas tais como os referidos Guns n’Roses, os Aerosmith, os Lynyrd Skynyrd, os Led Zeppelin, os The Eagles, os Deep Purple e tantos outros estandartes do rock clássico e do hard-rock dos anos 70 a 90. Esta sonoridade levou-me a querer – ou antes, a sentir a necessidade de! – ir mais além, e foi por volta dos meus 14 anos que descobri os Black Sabbath e companhia. Foi também nesse ano que mergulhei de cabeça, ao início como que por acaso, no mundo do heavy-metal: lembro-me de estar a preencher um daqueles questionários inconsequentes no Facebook (penso que rodava em torno do tema “Se a tua personalidade fosse uma música, qual seria?”, ou algo igualmente néscio) e de, no final, me ter calhado o tema “Down with the Sickness” dos Disturbed, curiosamente ainda hoje uma das minhas canções favoritas (falo da versão longa e não-censurada, não da radio-edit “comercial”). Tal descoberta fascinou-me, e fez com que começasse a descobrir mais música “parecida”: o nu-metal (Slipknot, Korn, SOAD, RATM, Linkin Park), o trash-metal (Metallica, Megadeth, Slayer e, de certo modo, Motörhead), a NWOAHM (New Wave of American Heavy Metal – bandas como Lamb of God, Pantera, Avenged Sevenfold, Killswith Engage, Trivium) e muitas outras cenas, subgéneros e artistas que, ainda hoje, estimo muito. Paralelamente, bandas como os Rush, os King Crimson e os Queensrÿche fizeram o obséquio de me levar ao rock/metal progressivo e ao djent, géneros nos quais ainda hoje, confortavelmente, habito (Dream Theater, Animals as Leaders, Jason Richardson, Coheed and Cambria, Periphery, entre outros).
Contudo, como tem vindo a ser comum na comunidade heavy-metal desde o seu surgimento comercial em meados dos anos 60, eu próprio era um tanto quanto elitista em relação ao meu gosto musical e à música que considerava “de qualidade”, excluindo à partida e de modo quase absoluto tudo quanto caísse sobre a alçada do termo “música pop”. Porém, como fugir desse universo vastíssimo se a dita “música pop” está, e penso realmente não estar a hiperbolizar, em todo o lado? Desde anúncios televisivos à programação regular da esmagadora maioria das estações de rádio (sim, sou “desse tempo”…), não havia como não reconhecer, inconscientemente memorizar, discretamente trautear ou ilegalmente apreciar (segundo o código moral de um metaleiro, pelo menos) os grandes êxitos da ubíqua pop. Tendo dito isto, acrescento o seguinte: não seria justo afirmar que, olhando para trás, não sinto uma certa nostalgia por alguns êxitos pop que marcaram a minha infância e a primeira metade da minha adolescência, temas com muita ou com muito pouca qualidade, geralmente com grande ênfase na produção e com características musicais (desde os arranjos às progressões harmónicas) de modo geral muito semelhantes entre si, mas com menor ou maior grau de complexidade (salientando alguns, por ordem cronológica de lançamento: “I’m Yours” [2008], “Lazy Song” [2010], “On the Floor” [2011], “Party Rock Anthem”, “Somebody That I Used To Know”, “We Are Young” [2012], “Just Give Me a Reason”, “Take Me To Church” [2013], “Stolen Dance”, “Waiting For Love” [2013]… – de quantas te lembras?). Assim, decidi apresentar uma seleção dos álbuns pop que, ao longo dos anos, mais me marcaram, e explorar os elementos que chamam à atenção de um metaleiro para este género imenso.
De facto, só em 2014 consegui realmente apreciar um álbum pop. Tratava-se do Life in Cartoon Motion (l. 2007), do virtuoso cantautor francês Mika. Ao longo dos meus 21 anos devo ter ouvido esse álbum não menos que duzentas vezes. Sei todas as letras de cor e salteado, de frente para trás e de trás para a frente. Prendam-me, se quiserem. Até hoje, o que mais me atrai nesse álbum é o quão feliz e despreocupado aquela música me faz sentir, como se fosse de novo uma criança. É um “álbum de verão”, de certo modo, mas também uma excelente coletânea de canções para ouvir tanto nos melhores como nos piores dias – o que não é dizer pouco…
De seguida, em 2017/18, cruzei-me com o álbum Carrie & Lowell (l. 2015), do cantautor Sufjan Stevens, um dos meus álbuns preferidos até hoje. Este é menos versátil: para mim, serve apenas para os dias maus, para me consolar na ocasional tristeza. Sufjan sabe uma coisa ou outra sobre a arte de escrever canções: as melodias e as letras são belas, a produção e os arranjos são minimalistas e muito eficientes, e o cruzamento entre lo-fi e acoustic/ballad-pop é magistral. Tudo isto, para mim, coloca Sufjan Stevens na lista dos melhores, mais criativos e mais esteticamente sensíveis cantautores do seu tempo.
Em janeiro de 2020, algures nos Balcãs, ouvi pela primeira vez Circles (l. 2020), de Mac Miller, álbum póstumo do rapper norte-americano. Este disco apanhou-me de surpresa, precisamente devido ao meu “elitismo” musical, à época ainda vivo e um claro impedimento a descobrir nova (e, muitas vezes, excelente) música. As letras são um portal direto para a mente de Miller, as bases instrumentais são, na sua maioria, minimalistas e de muito bom gosto, e a sua voz semi-arrastada, suave, apresenta-se ao ouvinte destreinado e desprevenido como uma lufada de ar fresco, algo novo a explorar e mergulhar de cabeça. Durante uns bons meses ouvi este álbum constantemente e ainda hoje a ele recorro, indiscriminadamente, sempre que me vem à memória. É um trabalho maravilhoso, um legado sónico deixado por uma mente difícil e perturbada, recheado de canções muito bem conseguidas; a meu ver, um disco intemporal.
Pouco depois, iniciou-se a minha “obsessão” em torno da figura e da arte de Jack Antonoff, um dos nomes incontornáveis da pop moderna (aos quais se juntam obrigatoriamente Rick Rubin, Max Martin, Jack Bhasker, entre outros). Inicialmente, cruzei-me com Antonoff graças aos álbuns Pure Heroine (l. 2013) e Solar Power (l. 2021), da Lorde, dois discos excecionais da cantora australiana (Antonoff produziu e co-compôs o segundo, tal como o álbum Melodrama, de 2017, também de Lorde, paralelamente a uma colaboração de longa data com Taylor Swift). Com Lorde, os arranjos e a produção são mais complexos, porventura até mais trabalhados (com exceção de Solar Power, que muitos criticam por ser um álbum relativamente uniforme do início ao fim em termos de instrumentação, vibe e sonoridade em geral), e as canções habitam a mente do ouvinte durante meses e meses desde o momento em que as ouvimos pela primeira vez. Foi, como dizia, através de Lorde que me cruzei com o trabalho de Jack Antonoff, que me fez mergulhar no passado e revisitar o(s) Bleachers e, claro está, os fun., banda na qual era guitarrista e compositor, lado a lado com Nate Ruess (lembram-se dele?). O álbum Some Nights (l. 2012) é, provavelmente, aquele que mais tenho ouvido nos últimos tempos, e não há como negar o talento desta banda que nos deixou tão cedo e tão sedentos por mais música. As canções são desenvergonhadamente comerciais, desenhadas para se tornarem hits instantâneos – há que agradecer a Bhasker, produtor, e a Antonoff, génio criativo –, mas incrivelmente interessantes e agradáveis de ouvir. Admiro muito o trabalho dos fun. e, para que conste, diria que é neste álbum que reside o melhor uso de auto-tune – ignóbil, temível ferramenta! – que já ouvi: trata-se de um pormenor sónico, de um efeito, de um embelezamento ocasional, e não de um perigoso “bote salva-vidas” para rappers ou trappers cujo sentidos de melodia, criatividade, condução vocal e/ou afinação deixam muito a desejar.
Em 2020, Dua Lipa lança Future Nostalgia e, em 2021, a inescapável Billie Eilish (em conjunto com o irmão, Phineas) apresenta-nos Happier Than Ever, enquanto Doja Cat se excede com Planet Her, três álbuns que, em conjunto com Solar Power (Lorde, 2021) sobressaem entre os lançamentos recentes que me fizeram crer que ainda há pop mainstream sólida e consistente, com conteúdo, a ser feita nos dias de hoje.
É difícil isolar os elementos que, quando muito bem manuseados, me fazem afastar do mundo do hard-rock e heavy-metal e mergulhar no universo da pop. Se, nuns casos, o que mais me cativa é a arte de bem escrever canções e/ou letras, noutros será a simplicidade aparente dos arranjos, a produção detalhada dos álbuns ou o modo como o conteúdo sónico (a música), o textual (as letras) e o visual (as capas dos álbuns e os videoclips) espelham os gostos e preferências, os hábitos e os estilos de vida, a estética, os problemas e as preocupações que marcam toda uma geração na qual, para o bem ou para o mal, me incluo.
Guilherme Santos
Nota do autor: ao longo deste artigo, utilizo livre e despreocupadamente o termo “pop” para me referir a música de cantautor lançada após 2010, com grande foco no processo de produção, em estúdio, e, geralmente, mainstream em termos de público e com bases instrumentais essencialmente eletrónicas, deixando assim de parte fenómenos como o pop-rock, o indie-pop, o pop alternativo, o r&b, o lo-fi e toda a música pop feita até 2010, ou por assentarem numa base instrumental baseada no combo rock – guitarra, baixo, bateria – e não em equipamentos eletrónicos, ou por simplesmente não se incluírem no panorama estético delineado acima.
Palavras-chave: “pop”; “metal”; “crónica”; “cantautor”; “produção”.