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Covers e arranjos… uma reflexão

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Não é raro, na história da música popular (termo abrangente que engloba tudo desde o jazz ao heavy-metal, passando pelo blues e pop-rock, entre outros estilos e géneros), vermos artistas a fazer covers de músicas de outros artistas. Não é também raro vermos esses mesmos covers ou arranjos ficarem mais populares ou assumirem uma maior significância histórico-cultural do que a obra original, para além de, consoante todo o contexto sociocultural que os envolve, poderem assumir um significado completamente diferente do originalmente pretendido.


Jimi Hendrix, ao tocar e cantar a sua versão do hit de Bob Dylan “All Along The Watchtower”, tornou esta canção tão popular que, quando o cantautor de voz nasalada, cabelos encaracolados e harmónica reapareceu em palco agora já “eletrificado”, a partir de 1965, a sua interpretação do seu próprio êxito assemelhava-se mais à de Hendrix do que à que costumava tocar anteriormente, solos e tudo. Algo semelhante aconteceu com “The Man Who Sold the World”, que os Nirvana tocaram no seu icónico MTV Unplugged de ’93 (lançado em ’94) e que se tornou mais popular do que o original de Bowie, com “Live and Let Die”, dos Guns n’ Roses (originalmente de Paul McCartney), com “Am I Evil?” (tocado pelos Metallica e, para um público altamente sortudo na Bulgária em 2010, pelos Big 4 do trash metal em conjunto, originalmente dos britânicos Diamond Head), e com muitos outros casos.


Mas eis um que, a meu ver, se destaca: quando Gershwin, em 1935, estreia a ópera Porgy and Bess (com a condição de que fosse interpretada por um elenco negro e não por atores brancos com blackface, algo praticamente impensável na Broadway do período entre Guerras), hoje muito aclamada no mundo do teatro musical e conhecida principalmente pelo número “Summertime”, inclui nele um dueto, “I Loves You, Porgy”, cuja letra diz, e passo a citar:

 


‘I loves you, Porgy.

Don’t let him take me,

Don’t let him handle me,

And drive me mad.

If you can keep me,

I wanna stay here with you forever

And I’ll be glad.’

 

 

Ora, para mim – e conhecendo a ópera em causa e o seu enredo –, a mensagem é simples: este é um número sobre violência física e psicológica numa relação, cantado pela vítima que espera algo melhor com o homem que ama e com quem verdadeiramente quer estar. No entanto, algo muito interessante acontece quando Nina Simone, cantora e pianista mas também ativista negra, canta esta canção, o que não aconteceu raramente, tendo-se tornado um cover recorrente e muito popular ao longo da sua carreira: devido ao seu contexto e à origem étnica de Nina Simone, este dueto agora transformado em monólogo cantado torna-se um hino antiviolência, sim, mantendo portanto o seu carácter feminista de origem, mas assumindo ainda uma importância especial dentro do contexto da luta do movimento BLM pela igualdade e justiça racial nos Estados Unidos. Note-se que Simone e Martin Luther King Jr. eram amigos, embora divergissem no que toca ao uso da violência no contexto da luta negra. Assim, “I Loves You, Porgy” torna-se, “só” (não há aspas suficientes no mundo…) por ser interpretado por Nina Simone, um hino negro. Feminista, sim, mas também negro. Para complicar ainda mais a situação, eis que Jeff Buckley, em algum ponto durante a sua curtíssima carreira, nos apresenta a sua própria versão desta canção onde, por não inverter o género (“him” passaria para “her”, prática comum no pop moderno e contemporâneo recheado de canções de amor cantadas pelo homem para a mulher), atribui à música um carácter pró-LGBTQIA+. Como tal, num espaço de 50 anos, este número musical passa de um dueto feminista para um hino feminista e negro, e finalmente para um hino queer, apenas com base no contexto em que estes arranjos se inserem, na personalidade, características biológicas e ideologias dos intérpretes, e ainda nas escolhas de interpretação dos mesmos (não inverter o género no caso de Buckley, exacerbar a negritude bela da sua voz no caso de Simone).


Tive a sorte de testemunhar, em Londres, um caso muito peculiar deste fenómeno, quando assisti a uma récita d’Os Miseráveis por uma das companhias residentes da West End. Eis a minha surpresa quando o segundo ato abre com o hino coral “Do You Hear the People Sing?”, não por não conhecer bem o musical (pois acredito com convicção e relativo grau de certeza que o conseguiria cantar do início ao fim com muitos poucos enganos), mas por reparar que o ator que protagoniza este número é, efetivamente, negro. Passo a explicar: quando se ouvem os versos “Do you hear the people sing, / Singing a song of angry men? / This is the music of the people who will not be slaves again!” cantados por este (fantástico, note-se) ator negro, estes deixam automaticamente de remeter para republicanos franceses (homens brancos) em pleno período pós-Revolução de 1789 contra a Monarquia (durante o primeiro quartel do século XIX), e a ideia de escravatura nos Estados Unidos da América dos século XVII, XVIII, XIX e XX não nos (me?) sai da cabeça. Tal não me parece fonte de crítica, simplesmente é de notar, pela sua inegabilidade, parece-me, que de facto estas palavras ganham um significado completamente novo dependendo do modo, por quem, onde, e quando são cantadas.


O mesmo se passa quando Aretha Franklin canta “Respect”, um tema de Ottis Redding que ficou para sempre intimamente ligado à rica discografia da cantora. Neste caso, vemos um texto a favor da igualdade social (escrito e cantado, originalmente, por um homem negro que pede – ou melhor, exige – respeito) assumir também um papel feminista. Negro, mas também feminista. De modo semelhante a “I Loves You, Porgy”, vêm-me à cabeça as icónicas palavras de Sojourner Truth, ditas em 1851 numa convenção pelos direitos das mulheres em Akron, Ohio, em que lhe pediram explicitamente para não misturar assuntos abolicionistas (justiça negra e igualdade social, neste caso em particular referimo-nos à escravatura) com a luta feminista. “Ain’t I a Woman?”. Haverá frase mais poderosa e que contenha em si tamanho peso cultural?


A obra de arte (musical, pelo menos, mas acredito que a generalização não seja abusiva) trata-se, então, de algo absolutamente permeável, subjetivo e, por isso, mesmo no seu estado “final”, eternamente incompleto. Isto porque, parece-me, o seu verdadeiro significado só nos é revelado quando interage connosco, já depois de ter interagido com os seus criadores e o contexto em que foi criada. Poucas conclusões há para serem tiradas desta observação, ou talvez haja demasiadas, por isso não o tentarei fazer aqui. Deixo os leitores apenas com este pensamento: as palavras, sejam quais forem, existem num certo contexto que lhes atribui um certo significado. Para além disso, como já observámos ou tentámos observar, uma obra de arte nunca atinge o seu verdadeiro estado final. Para mim, é essa a beleza da Arte. É também algo a ter em conta quando se observa, interpreta, ou reinventa uma obra já existente.


Certo?


 


 

 

Guilherme Santos



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