Como escrevo as minhas canções - Courtney Barnett ao vivo no Electric Lady Studios
“Oh I’ve been dreaming
Dreaming of a brand new start”
Courtney Barnett, “How to Boil an Egg”
“Não nasci para odiar, mas sim para amar”
Sófocles, “Antígona”
Não basta não ter medo – apesar de esse ser o principal requisito – é preciso ter a noção (cobarde) de que talvez a nossa coragem não nos chegue até ao fim, que se dissolva perante a extensão do que se pretende dizer. Há um espírito à solta entre o verbo “dizer” e o objecto preso em “do que”. É preciso confiar nas estruturas, a poesia à cabeça: um ponto, para lá de “She loves you, yeah, yeah, yeah”, em que a cenografia da escrita deixa de ser pública – quando não tratamos de assuntos narrativos, quando ofuscamos os referenciais, acrescentamos pistas que só a nós dizem respeito e que o leitor não terá hipótese de capturar – essa operação de decoding dará prazer ao leitor? Inegável prazer deu ao escritor, que colocou a sua marca no mundo e ao mesmo tempo só se deu a si o poder de olhar. Mas quem ouve subjectiviza – ou não? She loves you: quem o sujeito, quem o objecto? Façamos uso dessa maldita, a linguagem: aceitar que, primeiro, qualquer coisa nos escapa na captura da realidade (ao escritor) e na descodificação desse instantâneo (ao leitor). Já ninguém procura totalidades hoje em dia, e o aproximado tem nos servido bem. Daí que, segundo, se a troca se dá, algum significado é transitado entre nós: dois ponto um, que a distorção na captura em “dizer” nem sempre o torna opaco; dois ponto dois, o receptor, perante o translúcido, é levado a adicionar pontos da sua lavoura que fechem o texto, o tornem perceptível. É claro que um perceptível pode ser completamente alheio a outro. Como digo, a troca dá-se.
“I masturbated to the songs you wrote
Resuscitated all of my hopesIt felt wrong but it didn’t take too long
Much appreciated are your songs”
(“Lance Jr.”)
Quando canto estes versos ao meu público refiro-me a uma experiência (da mente ou da mão, real ou imaginada); quando eles me cantam de volta as mesmas palavras, certamente não se situam no meu referencial, mas antes imaginam-se eles sujeitos, criaram camas, esperanças, músicas e alguém que as escreveu – e é isso que me cantam de volta. Bem entendido, cada crânio cria a sua variante da fantasia que eu sugeri. Ao cantarmos, essas variantes harmonizam. Suponho que a distância a que nos guardamos do outro possa ser reduzida, que a imagem das canções de que falo (“the songs you wrote”), que eles desconhecem, se possa sobrepor às que terão de imaginar e que eu ignoro. Perdoem-me se mostro o meu cepticismo em relação à possibilidade de transmitir mais do que factoides, se penso alto, se acho que este meio pode não ultrapassar o solipsismo. Mas também é verdade que nunca me acompanhei tanto de poesia como agora. Foi com esta música que abri o concerto no Electric Lady Studios, recuperando-a do The Double EP: A Sea of Split Peas.
Os truques que uso para escrever são os de qualquer outra pessoa. Não me custa nada alinhavá-los aqui. Hoje é o tempo da publicidade, do slogan, e essencialmente da mensagem rápida. A melhor maneira de transmitir profundidade para uma audiência impaciente é a justaposição total de duas ideias opostas, ou de difícil aglomeração. Os passos lógicos estão lá, mesmo que eu não revele, seja por pudor, por subtileza, por economia da canção, porque é que este dia é um desperdício, porque é que a minha vida se complica, talvez não seja necessário que saibam que a minha paixão está longe ou que a minha senhoria me aumenta a renda. Tirei isso da canção por achar que nos afastava, não nos aproximava. A arte, parece-me, tem como objecto o resíduo da vida, não a vida concreta.
“Another day
Oh, what a wonder
Oh, what a waste
(…)
Life’s getting hard in here
So I do some gardening”
(“Avant Gardner”)
Notem, porém, que não há mal nenhum em ser concreto (“I much prefer the mundane”). Na mesma canção não deixei de explicar tudo, de pintar uma narrativa clara: isto é, os verbos são claros, primeiro isto, depois aquilo e aqueloutro. Mas tentem sempre que haja um elemento fora, uma referência que abre o espaço mental, por exemplo um passado enterrado que, ao surgir no presente, o desfigura, o impele para a frente. Lembrem-se também que a poesia e a música estão intimamente ligadas, que o passo do verso importa até no slacker rock, e que às vezes uma boa rima não precisa de rimar (time/I/night): está lá a controlar o ritmo, a formar uma estrutura.
“Reminds me of the time
When I was really sick and I
Had too much pseudoefedryn and I
Couldn’t sleep at night”
(“Avant Gardner”)
Uma palavra ainda sobre as diferenças na sonoridade entre os meus álbuns de estúdio e este concerto no Electric Lady Studio: apesar de, na minha música, a guitarra tomar grande parte do som, reparem que uma boa banda faz milagres – comparem a força que “Canned Tomatoes” tem na versão ao vivo, principalmente na guitarra, tendo abandando o twee pop e entrado de cabeça no grunge: as harmonias mais ameaçadoras que a letra deixaria supor, uma bateria possante, um baixo que ruge. Neste álbum ao vivo, é fácil pensar nos Nirvana pela agressividade melódica do som, nos Pavement na estrutura de alguns solos. Falando de instrumentos, lembrei-me que podem até servir-se de um instrumento na falência das palavras: na próxima citação, transcrevi por reticências uns acordes de teclado que deixam tudo à vossa imaginação.
“You said
“We only live once”
So we touched a little tongue
And instantly I wanted to…”
(“History Eraser”)
Se o concerto tivesse durado mais (para sempre? durante o tempo da minha discografia?) podia dar-vos mais exemplos do que quero dizer: que o mundano é escudo suficiente para as emoções mais lancinantes (“my love-line seems intertwined with death / I’m thinking of you too” em “An Illustration of Loneliness”), que mesmo escondidos nos mostramos (“Thank you for cooking for me / I had a really nice evening / Just you and me” em “Anonymous Club”), que o ruído esconde em geral uma pérola no seu centro, mas que se não tivermos cuidado o bebé pode ir com a água do banho. Tenho especial orgulho em “David”, onde num blues que fui buscar a Bowie, consegui reverter um pouco dos papéis de género – pelo menos têm me dito que há gente a ler estes versos assim:
“Come on Davey, let’s go plant a tree
You’ll bring the spade, I’ll bring the seeds.”
(“David”)
Mas permitam-me então a indulgência de sair, como despedida, das premissas deste Live at Electric Lady Studios e termine falando de “Hopefulessness”, do meu álbum de 2018, Tell Me How You Really Feel. O som da música é tão agridoce, amistoso numa planície agreste, repetindo um poderoso riff, com essa amargura doce completamente refletida na letra. Reparem como o meu mister se alterou tanto, como se tornou capaz de tanta intensidade. Se conseguirem fazer uma referência helenizante (“you know what they say / no one is born to hate”) ainda melhor, porque a malta das clássicas papa sempre isso. Mas a chave da música – a chave do que vos quero passar hoje – escrevi-a eu, ipsis verbis, sem trabalho editorial, na canção:
“Take your broken heart
Turn it into art
Can’t take it with you
(…)
I’m getting louder now”
(“Hopefulessness”)
Francisco Fernandes