A música nas ruas da amargura, o egoísmo e Toby Corton
A música (ou antes, o som) aparenta estar em todo o lado. Mesmo quando se trata de um dos inúmeros momentos na vida de uma perdida jovem, em que tudo se pretende fechar, esquecer e deixar para trás. Porém, se tudo se esquece e se fecha, há algo que falta: música. E após essa retificação crucial, já podemos recolher, fechar do mundo e ter todos os desabamentos que queremos. Mas qual é a banda sonora que se procura para um desabamento? O que é que nos interessa: uma letra que nos compreenda e que reflita a nossa dor no mundo ou uma harmonia que nos hipnotize de tanto que se comprime nas suas notas ou que isole todos os pensamentos exteriores? Pessoalmente, se nem sei o que escreva por aqui, muito menos sei explicar minuciosamente o que quero ouvir enquanto percorro as ruas da amargura - quer esta rua se transite num dia que corre mal, quando o mundo lá fora é feio e tenebroso ou quando a alma precisa de amparo (e não o tem).
Num desses dias, enquanto me distraía com um dos mais vazios e esperançosos vícios existentes na atualidade – redes socias–, deparei-me com uma publicação da SofarSounds.
Caso não seja conhecimento comum (e não o é), a SofarSounds é uma organização internacional digna de ser pesquisada. E, dos seus concertos cuja localização não vulgar é notificada em cima da hora e cujos mais variados artistas só são revelados no momento, algumas das subsecções desta organização (identificadas pelas cidades a que se associam) durante os confinamentos exploraram (ainda mais) a vertente virtual da sua existência.
Portanto, no meio do meu desvaneio, deparo-me com uma das suas publicações. E paro, escuto. Por uma vez, deixo de deslizar desalmadamente por uma miríade de publicações a que nem me dou ao trabalho de prestar atenção. Não leio os pequenos caracteres abaixo, apenas escuto: por entre acordes repetitivos, que parecem ter como objetivo principal o suporte e acompanhamento da voz (com a amostra de um ou outro excerto de melodia), ouve-se o timbre invulgar de Toby Corton. No excerto ouvido intriga-me o seguinte: como pode a personificação de uma voz oca (o mais que em palavras consigo pôr o timbre desta voz) transmitir tanto sentimento, ainda para mais parecendo-se esta tanto algo recitado? Talvez no mesmo sentido em que uma árvore de longa longevidade, que passa por tanto, é oca e alberga tantos seres vivos sob a sua casca. Ouvi e repeti, voltei a repetir o pequeno vídeo de um minuto. E, lentamente, por entre a decifração de acordes, ritmos, timbres, dinâmicas e acentuações algo inesperadas, começo a entranhar a letra. E, naquele momento e em todos os seguintes, eu ouvi a letra enquanto destinatáriada mensagem, enquanto remetente que eu um dia gostaria de ser e enquanto ansiosa pessoa que espera religiosamente, todo o santo dia, pelo carteiro. E imediatamente senti vontade de ir descobrir este novo músico, bem como uma necessidade visceral de ouvir o resto da música.
Uma música tão curta, que conta uma história tão longa… Curioso como a última parte instrumental (que realiza a última frase e cadência a solo), contrasta tanto com a voz. Ao longo de toda a canção, a voz e o piano, parecem por vezes contar a mesma história. Outras vezes uma é paralela ao seu par. Todavia é especialmente notável a distinção entre os dois percursos no final da música. Se a última frase proferida e cantada apresenta alguma reminiscência de esperança incerta, então a instrumentalização faz pensar que, ao fim de muitos altos e baixos, efetivamente ficou tudo bem no momento derradeiro.
Posteriormente fiquei a saber que a música tinha muito mais camadas do que eu imaginei, simplesmente por ler a descrição da publicação, e que, talvez e certamente, eu a tenha interpretado de uma maneira totalmente diferente da pretendida pelo compositor. Mas tirar-lhe-á, essa intenção original, valor à minha própria? Ou terão a linguagem, a música e a mente humana essa capacidade, em muito baseada no egocentrismo?
Escreveu o próprio compositor sobre a música “I wrote this reflecting on my own experience as a closeted queer youth, singing songs that the younger me needed".
“Song to a younger me” – Toby Corton. E não é que me esqueci do abismo em que me encontrava enquanto esquadrinhava a música?
E tu, o que ouves para esquecer o Mundo?
Mariana Rodrigues