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Tomatito: a herança cigana na ponta dos dedos

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Fotografia de Jordi Calvera

Na passada sexta-feira, dia 19 de novembro, desloquei-me até ao Palau de la Música Catalana para assistir a um concerto. Estando a realizar um mestrado na Escola Superior de Música da Catalunha, em Barcelona, não podia perder a oportunidade de experienciar um espetáculo numa das salas mais emblemáticas da Europa. O Palau não só prima pela sua acústica sublime, que permite ao ouvinte ter uma escuta definida em qualquer ponto da sala, mas também pela sua beleza arquitetónica ornamentada, o que faz com que esta sala de concertos se apresente como um marco do modernismo catalão e também como Património Mundial da Unesco.

O facto de estar a viver em Espanha despertou-me também um certo interesse em ir em busca do meu primeiro contacto com a música tradicional espanhola, mais concretamente com o flamenco, uma linguagem musical desenvolvida no sul do país, na comunidade da Andaluzia. No entanto, nunca pensei que a minha estreia seria perante Tomatito, considerado por muitos uma lenda viva da guitarra flamenca.

Para aqueles que não estão familiarizados, José Fernández Torres, mais conhecido como Tomatito, nasceu e cresceu em Almeria, no seio de uma família de músicos de flamenco. Ao demonstrar uma extraordinária vocação para a guitarra, Tomatito rapidamente chamou a atenção de vários músicos exímios que assistiam às suas performances nos tablao da Andaluzia quando ainda era adolescente. Entre esses músicos estavam Paco de Lúcia e Camarón de la Isla, considerados os dois nomes de maior relevo do chamado “Novo Flamenco”, que, impressionados com o talento de Tomatito, o recrutaram em 1973, com apenas 16 anos, para os acompanhar. Com os seus mestres, como respeitosamente e carinhosamente os apelida, Tomatito gravou dez álbuns, seis a acompanhar Camarón e outros quatro a acompanhar Camarón juntamente com Paco. Ao todo foram 19 anos a acompanhar Camarón de la Isla, até este falecer precocemente em 1992, com apenas 41 anos. Entre diversos álbuns a solo, Tomatito procurou também trazer para o flamenco novas combinações sonoras nomeadamente através da mistura com o jazz e também com a música proveniente da América Latina. Premiado com seis Grammys Latinos ao longo da sua carreira, Tomatito é assim reconhecido internacionalmente como um dos maiores nomes do flamenco contemporâneo.

No Palau de la Música Catalana apresentou-se acompanhado pelo seu filho José del Tomate na segunda guitarra, Israel Suárez “Piraña” na percussão, Morenito de Íllora e Kiki Cortiñas nas palmas e coros, e ainda dois convidados especiais: os cantores Duquende, considerado o grande sucessor de Camarón de la Isla, e Antonio Suárez “Guadiana”. O concerto, inserido na programação conjunta do Voll-Damm Barcelona Jazz Festival 2021 e do De Cajón! Festival Flamenco de Barcelona, trouxe como mote “Viviré”, título do álbum de 1984 que Tomatito gravou com Camarón e Paco. Estávamos assim perante um espetáculo onde, mais do que celebrar a sua carreira, Tomatito pretendia recordar e homenagear os seus mentores.

Por volta das 20:45 o concerto teve o seu início ao som das guitarras de Tomatito e José del Tomate na forma de um interlúdio instrumental, ainda sem grande virtuosismo, mas já a demonstrar grande domínio e mestria no instrumento. Depois deste momento, o concerto prosseguiu com uma dinâmica interessante, com os vários músicos a entrarem e a saírem consoante o número musical, apenas Tomatito permaneceu em palco durante todo o concerto. Ao longo do espetáculo, foram apresentadas peças com base em diferentes palos; o palo é o nome que se dá às formas musicais presentes no flamenco. Cada palo tem o seu padrão rítmico, o seu modo, os seus motivos, o seu tipo de estrofe e a sua origem. Todos os palos estão inseridos num determinado estilo de cante consoante a sua abordagem vocal e dimensão emotiva. Duquende, destacou-se claramente dos seus pares na forma como interpretou os seus palos secos; neste palo que é cantado à capela, o cantor demonstrou toda a sua destreza vocal recorrendo a ornamentações variadas com recurso a variações microtonais e melismáticas sem nunca perder o seu duende - termo utilizado na gíria para enaltecer a expressividade e a transparência emotiva de uma performance de flamenco.

Tomatito, demonstrou todo o seu duende quando partiu para uma interpretação emotiva do tema “Two Much Love Theme”, que teve uma dedicatória especial ao seu mestre Paco de Lúcia. Neste tema, que se encontra presente no álbum “Spain”, editado em 2000 e gravado em conjunto com o pianista de jazz caribenho Michel Camilo, Tomatito demonstrou todo seu toque pastueño, tendo como destaque os seus vibratos, legatos e pequenos apontamentos de picados.

O público, que vinha a aplaudir incansavelmente todas as prestações, ansiava por um momento em que nas suas cadeiras pudesse “gingar” um pouco ao som dos palos, esse momento chegou na forma de “Rosa Maria”, tema homónimo do álbum de 1976 de Camarón de la Isla. Com uma estrutura assente no palo tango, este tema destacou-se dos demais pela sua componente rítmica dançável e pela exímia prestação de Tomatito na execução de arpejos e rasgados.

À medida que o concerto se ia encaminhado para o fim, Tomatito foi também dando espaço para que os outros músicos demostrassem todas as suas capacidades enquanto solistas. De todos, o mais distinto foi sem dúvida o percussionista Israel Suárez “Piraña”, que, com recurso a um cajón, uma darbuka, uma tarola e dois pratos, levou-nos numa viagem virtuosística alucinante, sem nunca perder as noções rítmicas, e que culminou num dos maiores aplausos da noite, tal era o êxtase por parte da plateia.

Para o fim ficaram guardadas as bulerias, este é talvez o palo mais famoso, assenta num padrão de 12 tempos com a acentuação nos tempos 12, 3, 6, 8, 10 e é tocado a um ritmo frenético entre os 195-240 bpm. Neste momento do espetáculo, todos os cantores alternaram entre si um conjunto de coplas, com recurso ao tradicional ole Duquende, “Guadiana”, Cortiñas e Íllora iam encorajando-se uns aos outros com o intuito de ver quem arriscava mais em termos técnicos. O público encontrava-se galvanizado e sem qualquer intenção de arredar pé, mas este era mesmo o ponto final numa noite repleta de emoções e sensações que foram desde a catarse até ao frisson e, a julgar pela moldura humana que se apresentou no Palau de la Música Catalana, podemos com toda a certeza afirmar que o flamenco está vivo e recomenda-se. Ole!

Rodrigo Baptista

Palavras-chave: “flamenco”; “guitarra”; “concerto”; “palo”; “Andaluzia”

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