Os Ujos
No passado dia 6 de outubro tive a possibilidade de assistir, no Altice Arena, ao concerto conjunto de Miguel Araújo e de António Zambujo.
Dada a dimensão do auditório, o espectáculo começou um pouco mais tarde do que o previsto, mas não demorou a surpreender: assim que as luzes escureceram, a voz de António Zambujo irrompe, com “Fadista Louco”. Num canto solto, mas decidido e forte, enquanto Miguel Araújo, na sua guitarra elétrica (que tanto marcou a noite), fez ligeiros apontamentos, como que a comentar a voz de Zambujo. Assim se inicia o concerto dos “Ujos”, que há sete anos esgotara Coliseus. O receio inicial que um auditório tão magno cortasse o ambiente íntimo que estes dois artistas transmitem, desvaneceu-se: a música, de repente, transforma-se no tema do Catavento da Sé e o público, reconhecendo-o, começa desde logo a cantarolar.
Após o Catavento – onde contactamos com as personagens Rosa, Maria, Joana, entre tantas outras – o público é presenteado por várias canções de ambos os artistas que nos fazem mergulhar num constante contar de histórias. Das várias particularidades maravilhosas que marcaram esta noite, esta é uma das que gostaria de destacar: já desde a minha infância, nomeadamente com Sérgio Godinho (seja “Com um brilhozinho nos olhos”, “O Primeiro dia” “Etelvina” ou “Terça-feira”), sinto a capacidade de uma canção nos fazer entrar em histórias particulares – cada figura caricata caracterizada pela melodia e pela poesia de determinada música entra na imaginação do ouvinte, ganhando cor e forma consoante a experiência de cada um de nós. As músicas dos “Ujos” têm igualmente esta capacidade. Nesta noite também entrei para as histórias das personagens de Miguel e de António, que, ao vivo, salientavam ainda mais as características únicas de cada figura por si criada.
Ao longo do concerto, o público viajou com os artistas por várias regiões, desde o Alentejo (região que, ao longo do concerto, regressou em vários momentos) até aos Açores (com a conhecida balada “Chamateia”). Passámos inclusivamente por regiões estrangeiras, as quais, em parte, correspondem a influências dos dois músicos. Viajando pela música britânica, Araújo tocou inclusivamente um excerto de “Romeo and Juliet”, da banda Dire Straits. Com Zambujo, por sua vez, viajámos pela música brasileira.
Há ainda a destacar a execução exemplar de Araújo na guitarra elétrica, desde os pequenos apontamentos a verdadeiros solos improvisados. O momento mais impressionante coincidiu com a apresentação da conhecida canção “Flagrante” – partindo de uma pequena parte instrumental, os dois artistas, Zambujo na harmonia e Araújo na secção melódica, passaram para um genuíno interlúdio da canção, com uma espantosa improvisação melódica na guitarra elétrica, acompanhada por muitos sorrisos trocados entre ambos.
Este concerto foi uma viagem pelas músicas dos dois artistas que se uniram nesta noite. Os temas de um são retomados por outro e vice-versa. A música não é de ninguém e é dos dois, em simultâneo. E, no fundo, foi isso que mais me impressionou: muitos dos artistas que cantam em conjunto apresentam duas vozes que, unidas, têm as suas particularidades. Porém, neste concerto, as vozes de Miguel Araújo e de António Zambujo tornam-se uma verdadeira fusão, que dá origem a um nome: os “Ujos”. Presenciei, assim, acima de tudo, um concerto em verdadeira comunhão entre ambos os artistas e entre estes e o público: apesar de a sala não ser a mais propícia a esta comunhão, a dupla criou, sem dúvida, um ambiente de conforto, de humor e de intimidade. Sentiu-se de uma forma muito concreta a união entre os intérpretes e o público que, em quase todas as canções, se tornou um público cantante.
Como bis, os cantores apresentaram a divertida canção “Reader’s Digest” e a serena “Foi Deus”. A canção que finalizou o concerto da passada sexta-feira foi, precisamente, a que iniciou o concerto conjunto dos artistas em 2016, completando assim o ciclo de concertos dos “Ujos”. A voz inconfundível de Zambujo iniciou e terminou o espectáculo, com Araújo a apontar os últimos acordes, como que completando um ciclo e, em última análise, tentando explicar aquilo que não tem explicação: o porquê de fazer arte e, em particular, o porquê de cantar: “Não sei, não sabe ninguém / Porque canto fado, neste tom magoado / De dor e de pranto / Neste tormento, todo sofrimento / Eu sinto que a alma cá dentro se acalma / Nos versos que canto.”
Sara Maia
9 de outubro de 2023
Palavras-chave: música portuguesa, Miguel Araújo, António Zambujo.