Mordo Mia: desejosos da prole de Zeus
Como muitas vezes costuma acontecer, cheguei quase atrasada no, há muito passado, dia 17 de março, para o concerto dos Mordo Mia.
A razão para este (quase) atraso estava relacionada (em pequena parte) com a minha falta de capacidade de me situar geograficamente e (em grande parte) relacionada com o local onde se realizou o concerto. A minha procura, assistida pelo Google Maps, pelo misterioso e underground BOTA revelou-se inútil, pelo que, decidindo seguir umas raparigas com ares de “alternas” sábias musicais, deparei-me com o BOTA — Base Organizada da Toca das Artes.
Este revelou-se um achado. O que aparentava à entrada ser um local de negócio aborrecido, surge, na verdade, como uma acolhedora casa de artistas com comida caseira e incentivadores das artes.
A disposição do local para concertos permitia ao público uma proximidade incomum com a banda e, levando o meu papel de ouvinte e “repórter” do concerto muito a sério, apressei-me para a fila da frente, para garantir uma visão total de tudo o que iria acontecer. Acompanhada de um caderno de notas, sentei-me no chão para poder anotar o que quisesse sobre o concerto e a energia hospitaleira convidou-me a fazê-lo.
Rodeados de amigos e apoiantes, os Mordo Mia iniciam a sua atuação em tom de boa disposição e brincadeira. Começamos esta viagem mirabolante com “Buquês”, que me era desconhecida até então, mas decididamente não o ficou, levando-me a recordar os versos por mim marcados: “Não há nada mais que eu queira ser do que o meu próprio embrulho”. O público descobre, com agrado, que João Roque (vocalista e pianista dos Mordo Mia) soa igualmente bem ao vivo, embora desta vez nos seja oferecido o visual marcante da sua veia a pulsar no pescoço, pronta a saltar. Na banda contamos com Ana Eduarda Martins no violino, Artur Morais no contrabaixo e Bernardo Pereira na percussão, para além do piano (e não teclas) e inconfundível voz.
Segue-se o seu single mais notório, “Tangerina”, que põe o público a acompanhar a letra atentamente — “A qualquer fruto sem caroço / As bocas dão as suas graças / Mas a cereja sobre o topo / É ver o pomo já sem casca”. A atrevida “Tangerina” fala sobre desejo e a eterna batalha entre o prazer fugaz e o prazer duradouro. Desta vez, ouvimos este single com toques de improvisação nas teclas e observamos a química entre os membros da banda, que se acompanham mutuamente em improviso. Um aviso importante para quem estiver a ler: é estritamente necessário ir ver o videoclipe de “Tangerina”. Realizado por Afonso Rapazote e Bernardo Rapazote, tem uma cinematografia belíssima e cria na sua audiência uma sede e desejo improváveis de serem provocados por uma “pequenina tangerina”.
Vem logo a seguir uma canção “com muitas vidas e muitas voltas”: “Saias”. Mais uma vez, contamos com engraçadas letras e o violino é destacado ao acrescentar um toque country inesperado — “...da saia da minha mãe fiz a bainha para um bem…”. A música que ouvimos depois, diz-nos João Roque, foi escrita no dia em que o vocalista conheceu Manel Cruz (dos Ornatos Violeta, para os poucos que não sabem) e este lhe ofereceu o seu disco. Aqui, o contrabaixo começa a faixa e brilha, algo que “salta à vista”, porque não é usado apenas como um simples baixo.
É-nos apresentada a faixa seguinte como uma “canção sobre a morte”, para nos avisar que as pessoas vão morrer sozinhas. Agora, é a vez do piano. Ouve-se da plateia um espectador honesto a gritar — “Ele toca para c****lho”.
A Bernardo Pereira cabe a difícil tarefa de garantir o ritmo, enquanto João Roque improvisa, algo que faz com naturalidade. Mantendo esta bonita sintonia, os dois apresentam o que irão tocar juntos.
Ouve-se “Foi (foi) na (na) loja (ja) do (do) mestre (tre) André”, Ana Eduarda Martins acompanha os vocais de Roque como um sussurro. Assim, um ritmo divertido começa e uma festa instala-se, com um divertido violino (ou contrabaixo pequenino, como lhe chamam os Mordo Mia), um divertido cantor e um divertido contrabaixo. Em cima do piano que o acompanha, o cantor tinha pousado um pequeno espelho redondo, no qual podemos ver o reflexo dele a atuar para si próprio. A razão? Não questionei e prefiro ficar no desconhecido, apenas podendo classificá-la como mais uma característica singular desta atuação. Neste pequeno interlúdio, as teclas acompanham o público, que foi facilmente convencido a cantarolar a “Loja do Mestre André”.
No fim, João Roque levanta-se dramaticamente e entrega o espelho acima referido a um sortudo membro da plateia. Os aplausos começam e o vocalista com um gesto pede para esperarem, enquanto começamos a ouvir a melodia, por todos imediatamente reconhecida, do “Parabéns a Você”, dedicado a um amigo.
Pouco tempo depois, Roque vai buscar uma secreta caixa — que escondeu nada discretamente no início do concerto — atrás do piano. Começa então uma história: narra o percurso de qualquer artista português bem-sucedido. Levantando um isqueiro e uma lanterna no ar chegamos à loucura total. João Roque, largou as teclas e transformou-se em contador de histórias. Com o violino, o contrabaixo e a percussão a acompanhar, somos levados para um ambiente de epopeia. O contador de histórias prossegue, utilizando uma pletora de palavras desconhecidas. Quando a alucinação perante nós termina, ouvimos “assim nasce e morre uma estrela, (...) que remédio”.
Somos informados que o concerto chega ao fim, algo que a multidão não aceita, e ainda nos é permitido ouvir “Trapos”, o single mais recente lançado há cerca de dois meses. Esta balada apresentou-se como o final perfeito para uma tão espirituosa atuação. O single estará presente no álbum da banda, que deverá ser lançado até ao final do ano.
“Para a semana há mais. Obrigado”.
Marta Tavares
Palavras-chave: “música portuguesa”; “alternativa”