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Habemus Papam em Barcelona: apontamentos sobre um “ritual de iniciação”

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Créditos: Ryan Chang

Ao sétimo dia de maio de 2022 tive o privilégio de participar no meu primeiro “ritual” - termo cunhado pelos devotos, fiéis ou fãs (como lhes queiram chamar…) da banda Ghost para designar os seus concertos enquanto experiência espiritual quasi religiosa.

Para aqueles que não estão familiarizados, os Ghost são uma banda sueca que teve a sua origem, em 2006, pelas mãos de Tobias Forge - vocalista, compositor, “estratega” e único elemento fixo do projeto. A sua sonoridade apresenta-se como algo “incatalogável”, ainda assim, podemos afirmar, de uma forma simplista, que o grupo mescla elementos musicais que vão desde o heavy metal mais primitivo, de bandas como Black Sabbath e Blue Öyster Cult, até ao pop dançável dos seus conterrâneos ABBA. Riffs melódicos e robustos e refrões hínicos e orelhudos são elementos que fazem parte do cardápio sonoro da banda de Linköping. Todavia, e, apesar do hibridismo sonoro se apresentar como uma imagem de marca da carreira dos Ghost, este não se revelou suficiente para satisfazer as ambições artísticas que povoavam a mente de Forge aquando da fase embrionária do projeto. Desta forma, e com o intuito de dar asas à sua perspicácia criativa e imaginativa, Forge decidiu desenvolver todo um conceito que unisse a estética da banda às suas letras carregadas de referências a temas como o ocultismo e o satanismo. Para atingir esta finalidade, Tobias optou então por aliar a música a uma abordagem mais teatral, isto é, desenvolveu um enredo onde os Ghost se apresentam como uma espécie de culto anticristão cujo líder é um antipapa demoníaco, intitulado Papa Emeritus, que se apresenta como uma espécie de alter ego de Forge. À semelhança de nomes como Alice Cooper e King Diamond, referências no imaginário da banda, também Papa Emeritus se expõe muitas das vezes como figura indissociável de Tobias Forge, um processo certamente exaustivo que nos leva a questionar onde termina o seu “eu artístico” e começa o “eu pessoal”. Mas guardaremos este tópico para uma futura reflexão…

Se até aqui os Ghost já não se apresentavam como uma banda enquadrada nos cânones tradicionais, o que dizer então da sua organização estrutural enquanto conjunto musical? Muitos, certamente, descreverão os Ghost como uma one-man-band, porém, não é bem assim. Se, por um lado, é verdade que Forge é quem compõe todo o material musical da banda, por outro, é importante referir que para cada ciclo (período que corresponde a um álbum e respetiva tour) Tobias faz-se acompanhar de vários músicos de sessão, que executam de forma exímia mas anónima, tanto em estúdio como ao vivo, todas as suas composições. Estes músicos, que funcionam como uma espécie de “cardeais” de Papa Emeritus e são conhecidos no imaginário de Ghost pelo termo Nameless Ghouls. A seleção destes músicos compete exclusivamente a Forge, e muitas das vezes não são os mesmos elementos a desempenhar funções em estúdio e nos concertos.

Enquanto performers, é no contexto do espetáculo ao vivo que os Ghost reluzem e demonstram toda a sua teatralidade ao conciliar composições arrojadas com produções visuais que primam pela exuberância cenográfica, efeitos especiais impactantes e figurinos espalhafatosos. Para cada encarnação da banda, e por encarnação refiro-me a cada álbum e respetivo papa (Opus Eponymous (2010) – Papa Emeritus I, Infestissumam (2013) – Papa Emeritus II, Meliora (2015) – Papa Emeritus III, Prequelle (2018) – Cardinal Copia (único álbum cuja personagem de Tobias não é um Papa) e IMPERA (2022) – Papa Emeritus IV), Forge pensa meticulosamente em todos os aspeto estéticos, sem nunca descorar, claro está, do conceito religioso por detrás da banda. Aliás, torna-se bastante interessante ver a evolução das produções dos Ghost, desde os primeiros tempos em que tocavam em pequenas salas, até à atualidade onde se apresentam em arenas e transformam o palco numa autêntica “catedral”.

Mas, regressemos agora ao dia 7 de Maio. A ânsia para ver este concerto mostrava-se elevada, afinal de contas não só era o meu primeiro “ritual”, mas também era o meu primeiro concerto de heavy metal em mais de dois anos e sem qualquer tipo de restrição imposta pela pandemia. Chegado ao Pabellón Olímpico de Badalona, em Barcelona, deparei-me com uma agradável “maré negra” que motivou rapidamente em mim um sentimento de pertença e de satisfação por estar no meu habitat natural. À medida que me deslocava para a fila sobressaiam as t-shirts que continham designs alusivos às figuras de Papa Emeritus e Cardinal Copia, bem como o arrojo de alguns fãs mais devotos que ostentavam a estola, mitra e pinturas faciais características das várias encarnações do Papa. Contudo, aquilo que mais me pasmou, foi o facto de ter visto um elevado número de crianças e de adolescentes acompanhados pelos seus pais que, tal como eu, estariam, certamente, perante o seu “ritual” de iniciação. Esta adesão dos mais novos é justificável pela sonoridade extramente melódica dos Ghost, bem como pela componente teatral dos seus concertos, dois fatores que proporcionam o ambiente ideal para que os “papás metaleiros” possam “batizar” os seus filhos no maravilhoso mundo dos concertos de heavy metal.

Já dentro do pavilhão e após assistir aos concertos das bandas de abertura, Twin Temple e Uncle Acid and the Deadbeats, comecei a constatar um certo paradoxo, isto porque a “maré negra” que avistara lá fora apresentava-se agora como insuficiente para compor, de forma substancial, toda a área destinada à assistência, levando a que se criassem grandes clarões de lugares vazios e sobrasse espaço tanto nas bancadas como na plateia, algo que provocou em mim uma certa desilusão para com os fãs espanhóis de Ghost. Aliás, com a banda a atravessar o seu pico de forma, um novo álbum aclamado pela crítica e uma tour que está a levá-los às maiores arenas da Europa, parece contranatura que os catalães não tenham esgotado o Pabellón Olímpico de Badalona. Ainda assim, posso comprovar que esta abstinência de alguns fãs não ofuscou de forma alguma a prestação magistral de Tobias Forge e Co.

A Barcelona os Ghost trouxeram a sua Imperatour, digressão de suporte ao mais recente registo de estúdio IMPERA, editado em março de 2022, cuja temática se centra maioritariamente na ascensão e queda dos impérios políticos que dominaram o mundo durante vários séculos.

Pouco passava das 21:00 quando se escutaram as primeiras notas do riff galopante de “Kaisarion”. Segundos depois, cai a cortina que cobre o cenário e os seus imponentes “vitrais”, ouve-se uma explosão provocada pela pirotecnia e o público delira com a entrada em palco de Papa Emeritus IV.

“Rats” e “From the Pinnacle to the Pit” foram as faixas que completaram a trilogia inicial, contudo o som ainda algo embrulhado e pouco definido impediu os dois temas de soarem com a pujança sónica que lhes é característica.


Créditos: Sergi Ramos


Como exímio mestre de cerimónias, Papa Emeritus IV foi conduzindo a liturgia ao som do rock psicadélico de “Mary on a Cross” até chegarmos a “Devil Church”, o instrumental de Meliora, que, sucedido por um duelo de guitarras estridente, permitiu dar algum protagonismo a dois - dos oito - Nameless Ghouls que acompanham Tobias Forge na estrada. Entre guitarristas, baixista, baterista, teclistas, multi-instrumentistas e coristas, os Ghost são agora nove, e já igualaram o número de elementos presente na mais famosa trupe do metal, os Slipknot. Ainda assim, este não foi um momento para proporcionar uma pausa a Papa Emeritus IV, mas sim para preparar o “desfile de moda” que se desenrolou até ao fim da “cerimónia”. Isto porque ao bom estilo popstar, ou melhor “popestar”, Tobias Forge fez desfilar uma série de figurinos espampanantes. Desde um visual militar até à indumentária dandy meets joker, o traje que certamente fez mais furor foi a já tradicional estola e mitra que permitiu a Forge encarnar Papa Emeritus IV em todo o seu esplendor.


Créditos: Sergi Ramos


Com o desenrolar do concerto, a curiosidade foi-se intensificando, pois pretendia aferir como é que as faixas de IMPERA se entranhariam numa setlist recheada de clássicos. O que é certo é que, tanto a cinematográfica “Hunters Moon”, lançada em conjunto com o filme “Halloween Kills”, a pop rock á la Toto “Spillways” e a sombria “Call Me Little Sunshine” soaram robustas entre as dantescas “Cirice”, “Ritual” e “Year Zero”. Já “He Is” permitiu à banda abrandar o ritmo do concerto. Esta, que foi a única balada da noite, trouxe um verdadeiro e tardio momento de comunhão entre a banda e o público, com o Pabellón Olímpico de Badalona a iluminar-se cintilantemente através das luzes dos milhares de telemóveis.

O momento mais espetaculoso da noite, esse chegou na forma de “Miasma”. O instrumental de Prequelle era dos temas mais esperados, isto porque marca o momento em que Papa Nihil é “ressuscitado” para tocar um arrebatador solo de saxofone que conduz ao outro da faixa. Em jeito de curiosidade, é importante referir que, segundo a “mitologia” dos Ghost, Papa Nihil foi o frontman da banda em 1969, durante o lançamento do EP Seven Inches Of Satanic Panic, registo que contém a ginga psicadélica “Kiss The Go- Goat”, tema que fechou o set principal do concerto.


Créditos: Sergi Ramos


Para o encore ficou guardado um emotivo discurso de Forge. Os tempos que vivemos ainda são algo conturbados, e Tobias, ao aperceber-se da situação volátil, estendeu os seus agradecimentos a todos os que se deslocaram até ao Pabellón Olímpico de Badalona, num sábado à noite, para assistir ao concerto. Contudo, esta ainda não era a altura das despedidas. “Enter Sandman” deu início à trunfada final. A cover que os Ghost gravaram para o álbum The Metallica Blacklist em comemoração dos 30 anos do The Black Album parece ter ganho lugar cativo na setlist, e, a julgar pela reação dos fãs que a cantaram em plenos pulmões, percebemos que nunca é demais ouvir este clássico de 1991. Por sua vez, a disco-rock “Dance Macabre” transformou o pavilhão numa enorme danceteria onde não faltaram jogos de luzes multicolores e confettis. A festa estava montada e nas bancadas já ninguém conseguia estar sentado, tal era a vontade de bailar. Já “Square Hammer” colocou um ponto final numa noite memorável. O hino máximo dos Ghost, paradoxalmente escrito por Forge para começar os concertos, foi entoado energicamente por todos enquanto uma apoteótica chuva pirotécnica caía sobre o palco.

O “ritual” estava assim consumado.



Rodrigo Baptista​

Palavras-chave: “heavy-metal”; “teatral”; "ritual"; "concerto"; "Barcelona"

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