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Há morcegos na Capitol?

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A 27 de outubro de 2016, o topo do icónico edifício que alberga a Capitol Records, em Hollywood, Los Angeles (conhecido por “The house that Nat build”, devido ao elevadíssimo número de álbuns vendidos por Nat King Cole, artista desta mesma editora), iluminou-se, tanto visual como sonoramente, com as cores, símbolos e canções dos Avenged Sevenfold (ou “A7X”, como são conhecidos pelos fãs). Tratou-se de um concerto surpresa, sem público, a mais de 40 metros de altura (lembrando vagamente o icónico “Rooftop Concert” de ’69, a última apresentação pública dos Beatles), transmitido em direto para um grupo exclusivo de fãs reunidos no estacionamento do mesmo edifício (alguns com óculos de realidade virtual, que possibilitaram a transmissão em 3D e 360º), tendo sido tocado um set de quatro temas da tão rica discografia dos A7X: “Nightmare”, “The Stage”, “Planets” e “Acid Rain”. O vídeo, disponibilizado no canal oficial de YouTube da banda, mostra não apenas a performance de M. Shadows (voz), Synyster Gates (guitarra solo e backing-vocals), Zacky Vengeance (guitarra base), Johnny Christ (baixo e “backing-screams”) e Brooks Wackerman (bateria), mas também animações com base na imagética da banda - associada à sua música -, não esquecendo ainda as ruas que, em plano de fundo, espelhavam o ritmo vertiginoso da vida naquele local em particular, a chamada Hollywood Boulevard, o centro de Hollywood: de facto, desde os pedestres até aos mais diversos tipos de veículos (de carros a autocarros, de táxis a bicicletas), tudo se movimenta ao ritmo a que, em pleno século XXI, já nos viemos a acostumar. Escusado será dizer que tal velocidade inquieta, presente nas ruas da cidade, se verifica também – e de que maneira! – na música dos A7X.

À medida que o gig vai evoluindo, torna-se clara a complexidade do heavy-metal (progressivo, em certos momentos) com que o quinteto nos presenteia: Shadows é um vocalista exímio, não há nota que lhe saia ao lado e, com o seu timbre vocal tão característico, aguenta estoicamente tanto os agudos a que, ocasionalmente, recorre, como os quasi-growls que, de vez em quando, o aproximam de uma corrente de vocalistas que inclui nomes como Corey Taylor (Slipknot, Stone Sour) ou Matt Heafy (Trivium), cujas linhas melódicas muitas vezes, devido à intensidade e amplitude do som resultante de tamanho esforço sobre as cordas vocais, tornam o seu canto quase gutural, podendo ou não evoluir (caso raro, no caso de Shadows) para os gritos de um Alexi Laiho (Children of Bodom) ou de um Randy Blythe (Lamb of God). Se é verdade que as linhas vocais são, apesar de tudo, livres e, em certos casos, espontâneas (na medida em que não raramente diferem da versão de estúdio), então também é verdade que tal não acontece na secção das cordas, à exceção, talvez, de Synyster Gates: de facto, tanto Vengeance como Christ são discretos, porém sólidos, precisos, quase mecânicos (num bom sentido, claro está) e de uma consistência assustadora, que nos faz pensar na capacidade rítmica de um James Hetfield (Metallica). Gates, contudo, tem um outro tipo de precisão e de consistência, igualmente admirável, por sinal, e que só encontramos em alguém tão único como um guitarrista de heavy-metal especializado em shreds e solos melodiosos (muitas vezes harmonizados por Vengeance) com passado tanto no punk como no gipsy-jazz: a sua palhetada é limpa e o som cristalino (apesar de toda aquela distorção), os movimentos das suas mãos são metodicamente calculados e os seus backing-vocals assentam por detrás da voz de Shadows como uma luva (ao contrário, talvez, dos gritos desajeitados, cómicos e, por vezes, desnecessários de Christ, principalmente em “Nightmare”). Wackerman, por fim, trata-se de um baterista verdadeiramente fenomenal, ainda “fresco” nesta banda: havia entrado apenas um ano antes, em 2015, após o fim dos Bad Religion, a sua banda anterior, imediatamente presenteando os fãs com uma performance verdadeiramente excecional no álbum “The Stage”, lançado em 2016 pela própria Capitol. Wackerman tem um toque preciso, recorrendo apenas à força necessária, e tanto as suas blast-beats como o seu pedal duplo são exemplos de ataques rápidos e consistentes, isto para não propor que a sua técnica não fica atrás da de um gigante como Mike Portnoy (Dream Theater, Liquid Tension Experiment), que gravou a obra-prima que é o álbum “Nightmare” (2010), após a tão precoce morte de Jimmy “The Rev” Sullivan, mastermind de tudo quanto era composição, arranjo, orquestração ou pura criatividade na discografia dos A7X (haverá melhor exemplo do que “A Little Piece Of Heaven”?).

O set teve início, como anteriormente referido, com “Nightmare”, um tema energético, pesado, talvez um dos mais populares e mais tocados ao vivo pela banda norte-americana. Abrindo com as harmonias de Gates e Vengeance, os dois guitarristas, é Shadows quem anuncia, num grito alto e semi-rouco: “Nightmare!”. Deste ponto segue-se toda uma sucessão de versos, refrões, pontes e secções solísticas em que todos, à vez e cada um à sua maneira, demonstram as suas capacidades, tanto técnicas como musicais. Embelezando o vídeo desta performance, de novo surgem animações que representam um ataque alienígena sobre as ruas de Hollywood, como que evocando o conceito por detrás do “concept album” (haverá termo mais próximo do metal progressivo?) “The Stage” (2016), que gira em torno do Espaço, da vida inteligente extraterrestre e das consequências e perigos da inteligência artificial e das tecnologias cada vez mais avançadas em relação à Humanidade (que, por sinal, segundo a visão dos Avenged Sevenfold, se autodestrói). Note-se ainda que, nesta altura, a banda estaria precisamente a promover esse mesmo álbum (no final deste set de quase meia hora, a banda anunciou que “The Stage” já estava disponível e à venda por 10$ numa banca montada no parque de estacionamento, uma oportunidade verdadeiramente única para os poucos fãs que lá se encontravam).

Logo de seguida vem a canção homónima do álbum em que se encontra: “The Stage”, o novo “bebé” dos A7X em pleno 2016/17, um tema progressivo por excelência, dado o grande número de secções internas em que se divide e subdivide. A secção inicial, que surge depois dos acordes do órgão, é constituída por um tapping “à la Van Halen” por parte de Gates e por um padrão altamente complexo e difícil vindo principalmente do pedal-duplo dos bombos do kit de Wackerman. A seguir a esta secção, Shadows entra com o verso “As I arrived, naked and cold”, que, para além de abrir em grande o álbum de 2016, inicia toda uma reflexão sobre a História e o estado atual da Humanidade segundo a lente escura de Shadows (“Who is the crowd that peers through the cage / As we perform here upon the stage? / Tell me a lie in a beautiful way / I believe in answers, just not today”). O tema evolui em estilo relativamente durchkomponiert, tendo em conta que se trata de um tema progressivo mas que tem, ocasionalmente, versos, refrões, motivos ou frases que se repetem, o que não é típico desta técnica de composição. Na secção solística, a meio do tema, notamos uma quebra total na música: as guitarras passam para um som limpo e Gates entra com um solo melodioso, diferente dos shreds rápidos, técnicos e virtuosos por que é conhecido, solo esse que irá dar entrada ao resto da banda. Na secção final, de regresso ao ritmo rápido mais característico desta banda, em que um Shadows estranho (do ponto de vista da fanbase dos A7X, na medida em que não está de óculos escuros nem aos saltos e a correr pelo palco, no seu estado natural de “animal de palco”) cospe “When did the walking apes decide that nuclear war / Was now the only solution for them keeping the score? / Just wake up / Can't you wake up?”, introduzindo o refrão final. O tema termina com uma secção em que os dois guitarristas, em perfeita sincronia e harmonia, tocam arpejos e notas de passagem rápidas. De seguida, Gates abandona a sua guitarra elétrica e tem lugar uma secção dedilhada que remete para o seu passado no gipsy jazz e na música flamenca, evocando gigantes como Django Reinhardt e Paco di Lucía. O som final, constituído por dois harmónicos, é tocado por Gates com especial jeito, e o set continua como se nada fosse.

Em “Planets”, um tema muito mais baseado em riffs do que em solos de guitarra propriamente ditos (ao contrário dos dois anteriores), é Wackerman quem brilha, em conjunto com Shadows, que aqui vemos a cantar com especial garra (veja-se o modo como canta os versos “Weapons are longing for the final stand / And they’re all aimed at you from heaven” e todos os refrões, especialmente o penúltimo). As animações, que mostram um planeta de origem extraterrestre e altamente desenvolvido a pairar sobre o edifício da Capitol, embelezam ainda mais esta performance energética e verdadeiramente livre dos Avenged Sevenfold.

“Acid Rain” trata-se de uma balada rock cuja sonoridade remete mais para Guns n’Roses do que para Metallica ou Pantera, as duas grandes referências dos vários membros da banda, com uma introdução de piano que cedo dá origem ao dedilhado da guitarra elétrica limpa de Vengeance, elemento ubíquo ao longo do tema, ao mesmo tempo que animações mostram o edifício da Capitol corroído e meio destruído por uma chuva verde, ácida, que se abate sobre a cidade. Um pequeno solo de Gates dá entrada à voz de Shadows, que, pela primeira vez neste concerto, surge plenamente limpa, melodiosa, sem estar na iminência de, a qualquer momento, se quebrar (ou seja, de se transformar em grito) com um pouco mais de intensidade ou entusiasmo. Não deixa de ser curioso o facto de terem escolhido terminar o set com os dois temas que encerram o seu álbum de 2013 “Hail To The King”, ainda por cima tendo em conta o quanto, à primeira vista, “Acid Rain” se parece distanciar do universo heavy-metal. Contudo, à boa maneira da poesia a que Shadows já nos tem vindo a acostumar, a letra inclui versos como “Life wouln’t be so precious, dear, if there never was an end” ou “Cleanse us acid rain / Send us home”, pelo que, liricamente, nunca nos chegamos a afastar assim tanto do ponto de partida.

E, assim, chegamos ao fim deste concerto de 26 minutos, que recomendo vivamente e que pode ser visto em baixo, com ligação direta para o vídeo disponível no canal de YouTube dos Avenged Sevenfold. No final, a bandeira negra com o logotipo da banda, o esqueleto de um morcego (ou será antes uma caveira com asas de morcego?), brilha no topo da Capitol, tal qual nova conquista para os A7X, que decidem deixar assinalada a sua presença. E é, por fim, a recordar momentos como este que aguardamos, pacientemente, um novo trabalho de estúdio dos Avenged Sevenfold com data de lançamento ainda em 2022.

Guilherme Santos

Palavras-chave: “concerto sem público”, “heavy-metal”, “inteligência artificial”, “espaço”, “capitol”.





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