Gold Soundz – o festival 2022 NOS Primavera Sound
Donald Barthelme foi um escritor de contos norte-americano que também se aventurou no romance e que, tendo escrito mais de cem histórias, estas foram muito naturalmente trinchadas e vertidas em duas compilações nomeadas de forma simples: Sixty Stories e Forty Stories. O primeiro destes livros tornou-me um seguidor do Don, e o Don, sendo um homem ansioso mas doce, só forçou dois credos, a saber: primeiro, dar uma característica positiva a uma personagem essencialmente negativa e vice-versa; segundo, nunca falar do tempo. Ele era intransigente em relação a este último ponto, e eu também o tentarei ser ao falar do festival NOS Primavera Sound, que se realizou nos passados dias 9, 10 e 11 de Junho, no Porto. O repórter perfeito precisaria de alguns apetrechos para uma cobertura eficiente do festival. Coisas simples, comezinhas, como a omnipresença, que pode ser substituída por um camião transportador de cerveja ou um caddy que abra caminho por entre os mais dez mil visitantes do festival, que perdeu um pouco do airoso de ver bandas icónicas e, ao mesmo tempo, poder andar tranquilamente à frente do palco sem atropelos. Ou a imunidade aos elementos, à fome e às filas para as bancas ou ao sono, depois de horas perdidas não a ouvir música, mas em filas para autocarros ou TVDEs. O repórter perfeito não sairia a meio de um belo concerto para ir a outro que se revelou uma desilusão.
As dez músicas que se seguem reflectem os gostos e as oportunidades de um membro deste site e o percurso que ele seguiu. Os vários outros membros do site (que muito gosto me deram ao vê-los) viram, gostaram e escreveriam muitas outras coisas diferentes, e espero que o possam fazer. Estão feitas as críticas a um festival que considerei muito positivo e as ressalvas à incompletude destas dez escolhas. Prossigamos. A primeira grande música do festival foi a “Under the Sun”, dos DIIV, com entrada de secção rítmica possante e uma guitarra inteligentíssima que sobe e desce degraus até chegar a um riff desconcertante – é forte esta pulsão que à primeira oportunidade nos arranca da vida real das logísticas e nos agita assim. A própria banda não esperava que ela tivesse o efeito que teve na audiência: é uma canção ponderada, que cobre todas as possibilidades, mas a verdade é que depois das t-shirts removidas e dos gentis hóspedes que vertiam a sua garrafa de vodka a quem lhes estendesse o copo, o ritmo das canções passou a ser marcado por grunhidos tribais e assobios. Apolo substituído por Dionísio para espanto dos DIIV, rapazes tristes que se sentiram bem na nossa companhia. Falando do som e da fúria, “Runway Houses City Clouds” do primeiro álbum dos Tame Impala, dotada de um riff que simula uma onda sinusoidal que nos persegue, teve o efeito contrário – se hoje em dia os Tame Impala são uma máquina gigantesca de dança, esta antiga música feita de uma melancolia feliz abrandou os espectadores, que acenderam um cigarro (ou algo desse género), e foram obrigados a falar com eles próprios. Salutar desejo e inóspito ambiente esse. Ninguém é mais inóspito que os black midi (“Listen! / The sweet peals of moonlight-induced lovemaking on the streets tonight / Listen!”), que nos recebem em “Welcome to Hell”. Esta música difícil, a que o corpo não se ajusta facilmente, como em quase todas as canções da banda, fez com que achasse que estava a ouvir um comboio a descarrilar, uma demonstração de humor inglês de uns miúdos que são ao mesmo tempo excelentes músicos e muito novos, contradição assustadora, capazes de um som hostil, sem quaisquer referências para mim (claro, os Talking Heads, os King Crimson, mas…) e dotados, todos, de um estilo incrível. Apesar de não ter gostado do concerto dos black midi, voltei a tentar a minha sorte com a nova música inglesa, desta feita sob a forma dos Squid. Há uma loucura comum nos dois projectos (“Rotten sense of pain, fear in your eyes / Houseplants, houseplants”, da canção “Houseplants”) mas o ritmo motorik só tem um objectivo – acção muscular – e foi assim que o público respondeu ao convite. Além disso, os Squid vestem-se com mais desleixo. Tenho a sensação que o mestre Barthelme poderia ter escrito “We speak about our days, yeah, we speak about a raise”.
Stella Donnelly cantou “Die” depois de ter prometido uma canção optimista. O espírito dos tempos (“Safety is important / You can trust me baby / But you’re always driving / All over the road / I don’t wanna die”) surge depois de um imponente, mágico e antiquíssimo som de sintetizador, símbolo do fim da era mecânica, nos pôr em sentido. Há de facto um optimismo escondido na medida como os sons saltam e Stella nos encanta com “And I can’t help myself / I know when you’re telling lies / I don’t wanna seem unkind / But what the hell is going on?”, cantado, como os Stereolab, nos píncaros do seu registo vocal. Se esta inocência perdida da autora de "Boys Will Be Boys" e sentido de humor nos enternece, não direi o mesmo da estrela espacial Grimes, que ia lançando risos sinistros entre grandes malhas durante o seu DJ set e que perguntou "I just wanna know... if y'all appreciate power?". Saí do DJ set depois do que me pareceu uma provocação, tendo descoberto que "We Appreciate Power" faz parte do seu álbum Miss Anthropocene. Os sons de sintetizador continuam a seduzir-me, vindos da cada vez mais perdoada e recriada década de 80: a rapper Little Simz é acompanhada por um beat fortíssimo que atirou ainda mais achas para uma fogueira que já ardia bem com a música "Protect My Energy", tendo sido um dos concertos mais divertidos do festival. Esta escolha, mais lenta, reflete os meus desejos no terceiro dia de festival – deslizar na pista em vez de continuar a saltar.
No primeiro dia, no entanto, eu não tinha os membros inferiores tão desgastados. Quando me desloquei ao concerto de Kim Gordon, de quem não conhecia o álbum a solo No Home Record, não sabia que continha sons tão pujantes e imediatos. Tudo foi mal pensado neste concerto por parte da organização, que teria tudo para a perfeição. Uma banda só de mulheres, vestidas muito ironicamente de fantasia masculina, não tiveram nada a seu favor – o público, demasiado efusivo noutras situações, aqui mortiço; o palco longínquo, a hora propícia a outros afazeres – só as músicas, que são do mais duro que há e, no entanto, com tantos prazeres para oferecer. Oiçam "Murdered Out", e me dirão. Falávamos de omnipresença há pouco, e foi neste momento preciso que ela me faltou. O concerto de Sky Ferreira teria começado mais ou menos a meio do de Kim Gordon, e eu retirei-me para a ver. Nessa altura ela decidiu surgir também, depois de um atraso considerável. Teve tempo para tocar "24 Hours", uma canção pop cristalina, perfeita. Quando me apercebi do erro que tinha cometido, bati em retirada de volta para o concerto de Kim Gordon. Ela já não estava lá.
Segurem o contador das dez canções: ninguém terá ouvido esta sem ser eu e o meu amigo Francisco, que ma mostrou e que por isso só fez parte do festival em sentido muito lato. Chama-se "Mystery Train", é de Johnny Waleen, quem quer que ele seja, e é uma cover do Elvis, onde quer que ele esteja; é psychobilly, é o reverb da guitarra no máximo, notas como gotas de petróleo, e é de uma beleza estonteante. O Francisco está a aprender a tocar harmónica, quer ser um bluesman como antigamente, e esperar pelos transportes fá-lo começar a tocar, por vezes até dentro do autocarro.
Para a última entrada da lista deixo-vos apenas os mínimos – vocês juntarão as peças. A banda são os Pavement, a minha banda preferida, de volta desde sei lá quando e sem motivo para voltar, decididos, mesmo depois da COVID, a manter os concertos que tinham marcado. O nome da música é "Type Slowly", um excerto do poema é: "Spells have been cast the urge has been lost / Snipers posted bills / As they should / Of our midnight vacation". Nós, dois grandes fãs, estávamos lá à frente e deixei cair uma primeira lágrima (esta é a difícil). As outras são fáceis.
De resto, o tempo no Porto esteve fantástico, talvez um pouco quente demais.
Francisco Fernandes