Blown off course
No dia 12 de janeiro fui transportada para uma viagem imersiva intitulada “Blown off course”, cuja tradução portuguesa é “Desvio de Rumo”. Uma ópera de Pedro Rebelo, com libreto (o texto que acompanha uma ópera) de Glenn Patterson, estreou no dia 12 de janeiro, estando em cena até dia 14 de janeiro, no O’Culto da Ajuda, e mereceu a nossa presença.
Trata-se de um encontro entre Japão, personificado por Hana (interpretado maravilhosamente por Camila Mandillo) e Portugal, personificado por Valentim (igualmente muito bem interpretado por André Henriques). A estas duas personagens acrescento a importância do Vento, que será também ele próprio uma personagem (que terá como intérprete Miguel Azguime) – ao narrar os acontecimentos, este último “proporciona simultaneamente encontros casuais à primeira vista e ações orquestradas”, como é dito na folha de sala. Um barco (uma referência às viagens marítimas dos portugueses no século XVI) e um avião (uma referência à atualidade) são desviados do seu rumo pelo vento (como o próprio diz: “A plane / A ship/ Blown off course / By Me / Wind or Fate”). Viajamos pelo tempo e pelo espaço com Hana e Valentim entre o século XVI e os dias de hoje.
O som do mar envolve-nos desde o início, sendo uma presença constante ao longo de toda a obra. Ao som junta-se a imagem. Vemos ondas, que sucessivamente rebentam em dois ecrãs, cuidadosamente dispostos na sala, ajudando a desenhar um espaço em que a plateia fica distribuída em três zonas, tornando o público um membro do palco.
À água junta-se o som do vento.
À medida que ouvimos estes sons e somos envolvidos pela presença marítima – o que é que, de facto, levou Portugal até ao Japão senão a água? – os instrumentistas vão entrando (e tocando), e ocupam, sucessivamente, os seus lugares. Hana entra e observa o mar, posicionando-se de costas para o público. Segue-se a entrada de Valentim, que, colocando-se também de costas para nós, olha para o ecrã, comunicando assim com a presença marítima. Por último entra o Vento, o narrador.
É assim que somos inseridos nesta viagem sensorial.
Gostaria de refletir sobre dois momentos marcantes desta ópera. O primeiro refere-se ao primeiro encontro entre Hana e Valentim: quando as duas personagens principais se apercebem da presença um do outro vocalizam a palavra “olá”. E poderíamos dizer que a peça se resume a isto mesmo: à comunicação. À comunicação pacífica, paciente e curiosa entre culturas. É ela que nos liga a todos como seres humanos, e é através dela que poderemos construir o mundo como um lugar com menos barreiras e mais ligações entre todos.
Desta exploração sonora inicial, passamos para uma experiência gastronómica, sendo este o segundo momento que destaco. Valentim, como português, dá a experimentar a Hana uma comida típica de Portugal – peixinhos da horta – e Hana, por seu turno, oferece um chá a Valentim. Pormenor curioso do violoncelo, que acompanha as várias tentativas da japonesa a provar o seu peixinho da horta, ele próprio experimentando sons agudos e rápidos, como se expressassem as hesitações de Hana. Uma vez mais, as culturas interligam-se, sendo o inglês o intermediário (língua que, aliás, compõe a maior parte do libreto, sendo Patterson irlandês): é lida a receita dos peixinhos da horta por Valentim em português, por Hana em inglês; de seguida, a mistura cultural é ainda maior quando Hana, narrador e Valentim debitam a receita em simultâneo, mas desfasados uns dos outros. Esta experiência gastronómica é acompanhada pelo público, que, já imerso na narrativa, começa ativamente a fazer parte desta, quando se ouve atrás de nós (ou a nosso lado, consoante a posição de cada um) um crepitar de azeite: um cozinheiro estava a fazer peixinhos da horta não só para Hana e Valentim, mas para todos. De seguida, ouve-se a água do chá a ser posta em chávenas. Todos os presentes na sala experimentam, se tiverem essa vontade, a bebida e a comida.
A ligação entre ambos, e, portanto, entre as duas culturas culmina: Hana e Valentim, depois de provarem o chá e o peixinho da horta, sentados, quase se beijam, aproximando as suas caras e dançando os rostos, de um modo muito subtil, mas sem se chegarem a tocar (o que mais nos une senão o amor?).
Começamos a compreender que esta viagem está a chegar ao seu fim, quando as duas figuras desaparecem, e vemos a sombra delicada de Hana num dos ecrãs.
Pomos em perspetiva o tempo, o espaço e as diferenças culturais: somos, no final, surpreendidos pelas semelhanças entre a língua portuguesa e a japonesa (deixo aqui apenas dois de tantos exemplos: copo – koppu; coentros – koendro). A ópera deixa-nos, no final, com uma sensação de inquietação, mas, simultaneamente, de calma e de reflexão sobre a condição humana — que tanto de bem consegue criar, mas, simultaneamente, destruir. “Two people now / two people then / Blown together / By me, Wind or Fate, / Then just as quickly”.
Sara Maia
Palavras-chave: estreia; comunicação; O’culto da Ajuda.