“A Dança da Morte”, por Liszt
Há uns meses, não gostava de conhecer ao vivo obras de música considerada clássica. Estranhava, quase que me sentia desconfortável, por demasiadas vezes ser apanhada de surpresa. Preferia conhecer o som que se ia seguir, e não ser surpreendida por ele ao vivo. Agora que tenho essa oportunidade praticamente semanalmente, sendo assistente de sala na Gulbenkian, aprendi a valorizar este primeiro conhecer de uma obra ao vivo. No passado dia 28 de novembro, assisti no grande auditório da Fundação Calouste Gulbenkian a um concerto temático das bruxas, que continha “Totentanz” - a dança da Morte -, de Franz Liszt. E a música prendeu-me de um modo inexplicável, como se a Morte me tivesse convidado a dançar, ficando sentada no meu lugar, mas dançando na mente.
A Morte será sempre, para o ser humano, o mistério mais indesvendável, e, portanto, uma das suas maiores fontes de inspiração. A ideia da Morte dançar já foi (e ainda é) muito explorada. Ingmar Bergman, no filme “O Sétimo Selo” (1956), coloca em cena uma dança da Morte. Stephen King, em 1978, escrevia um romance (“The Stand”), cuja tradução para português ganhou o mesmo título que esta obra de Liszt. Ainda nos últimos anos este romance foi adaptado para filmes e séries. Depois de Liszt, em 1875, Camille Saint-Säens escreve o maravilhoso poema sinfónico “Danse Macabre” - expressão francesa para “dança da Morte”. Mas recuemos à origem desta ideia. No final da Idade Média, com a avassaladora Peste Negra, a Morte torna-se uma ideia ainda mais recorrente no imaginário dos artistas. Começa a surgir, na pintura, escultura, literatura e gravura, a Morte como uma figura dançante - para acentuar a ideia de que, mesmo numa época em que a sociedade era rigidamente estratificada, a Morte, independentemente do estrato social, dançava com todos os seres humanos.
Em 1838, chega a vez de Liszt com a sua “Totentanz”. A obsessão dos românticos pela Idade Média leva Liszt a ser inspirado pelo fresco “O Triunfo da Morte”, de Francesco Traini, do século XIV. É retratado o horror da Morte perante a Peste Negra, com cenas referentes ao Inferno e ao Dia do Juízo Final. Infelizmente, esta pintura ficou bastante danificada após a Segunda Guerra Mundial, não nos permitindo revisitar a obra. Liszt, por excelência um compositor romântico, é atraído, naturalmente, por temas macabros, e muitas das suas composições são reflexo deste fascínio (relembremos “Funérailles”, ou “Pensée des Morts”); quando Liszt se confronta com este quadro, compõe a sua dança da Morte. “Totentanz” ganha forma numa peça de 15 minutos, para piano solo e orquestra - neste caso, a orquestra Gulbenkian foi dirigida por Nuno Coelho e o pianista solista era o exímio Nuno Cernadas. Ouvimos múltiplas variações da melodia gregoriana “Dies Irae” – e não é por acaso que é esta a melodia gregoriana escolhida por Liszt: o Dia do Juízo Final é usado como símbolo da Morte, capaz de unificar todos os seres - todos estaremos presentes no dia do Juízo Final e seremos julgados perante os nossos atos, independentemente do nosso estatuto social.
Revisitamos a época medieval com o simples contraponto no piano, mas rapidamente a peça ganha uma dimensão de intemporalidade, havendo uma fusão perfeita entre orquestra e piano - instrumento ideal para personificar a Morte, como se os ossos fossem os seus martelos.
A Morte tem vários andamentos na sua dança: por vezes, está furiosa, e os metais da orquestra acompanham a sua fúria. Noutros momentos, a Morte embala os próprios mortos no seu leito, e o piano dança com o clarinete.
Nos últimos 3 minutos, as cordas tocam de uma determinada maneira que vale a pena destacar: o movimento col legno, ou seja, o movimento com a parte de madeira do arco virada para as cordas, é notório. Quando perceciono estes sons, imediatamente ouço os ossos dançarem com a melodia tocada pelos sopros e pelo piano. Para terminar, um conjunto de escalas cromáticas são usadas na última coda do piano: como se, de facto, se concluísse que a Morte dança em todas as notas e, portanto, com todo o ser que vive.
Estava eu, sentada no Grande Auditório, por um lado, presa à cadeira por estes 15 minutos colossais, pensando como uma peça que nunca tinha ouvido me tinha tocado tanto ao vivo, e, por outro lado, com as variações de uma melodia que em tempos aprendera no Instituto Gregoriano, a minha mente dançava, pela primeira vez, com a ideia da Morte.
Sara Maia
FONTES: https://www.wga.hu/html_m/t/traini/triumph.html https://en.m.wikipedia.org/wiki/Totentanz_(Liszt)
PALAVRAS-CHAVE: "Morte"; "Dança"; "Liszt"; "Dies irae".