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Girls’ girls: A voz histórico-feminina das The Last Dinner Party

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Ultimamente, tenho sucumbido a uma tendência cada vez maior de privilegiar vozes femininas. Dou por mim a escolher ler autoras e a revirar os olhos a livros escritos por homens. Vou mais rapidamente ao cinema quando sei de um filme realizado e/ou escrito por mulheres do que para percorrer a lista dos nomeados aos Óscares (aliás, boicotem-nos). Quanto à música, os danos são mais antigos; há já alguns meses que pretiro ouvir homens e me inclino para vozes de mulheres. Muitas acusações me podem ser apontadas, e eu própria o faço ocasionalmente: onde está a inclusão que tanto tento incorporar na minha vida quando discrimino de acordo com o género? Por outro lado, não serão os meus gostos e interesses pessoais absolutamente indissociáveis da minha subjetividade, da minha posição no mundo, dos privilégios e discriminações a que eu própria fui exposta ao longo da vida? Prefiro dar voz a mulheres, talvez por não conseguir ignorar o silenciamento ao qual foram obrigadas durante tanto tempo – e ao qual ainda somos (para sempre herdeira da Maina Mendes; para quem ainda não conhece, aconselho a leitura deste clássico literário feminista escrito pela Maria Velho da Costa, que não me sai da cabeça desde que o li).


Ao longo do tempo, fui acumulando girl bands no catálogo de artistas que ouço. Já desde 2010 que sou uma girl de girls bands – via e revia o DVD de karaoke e coreografias das Just Girls com grande paixão e fervor. Os gostos musicais alteraram-se (e ainda bem), mas a tendência para privilegiar vozes fortes femininas não. Os últimos anos têm sido testemunha disso: os meus tops estão sempre recheados de lançamentos de mulheres. Em 2021, Women in Music Pt. III, das irmãs Haim. Em 2022, o surpreendente e poderoso álbum de estreia das Wet Leg. No ano passado, chorei demasiado com the record, das boygenius. Ainda agora terminámos o segundo mês de 2024, mas parece-me que o meu argumento se confirma: ando viciada no Prelude to Ecstasy, das The Last Dinner Party, lançado há praticamente um mês, dia 2 de fevereiro de 2024.    


Tal como os nomes que referi acima, também The Last Dinner Party se trata de uma banda composta totalmente por mulheres e pessoas não binárias. São cinco: Abigail Morris na voz, Lizzie Mayland e Emily Roberts nas guitarras, Georgia Davies no baixo e Aurora Nishevci nas teclas. Nos concertos, junta-se a elas Rebekah Rayner na bateria. Ainda antes de lançarem música oficialmente, começaram a popularizar-se na cena musical londrina, mas foi o primeiro single que deu início ao aclamado banquete das TLDP. “Nothing Matters” entrou para o topo dos tops assim que foi lançada, em 19 de abril de 2023. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que a ouvi e do sentimento de reconhecimento inerente a quando se fica presa numa música à primeira escuta. Como se já a tivesse ouvido antes, tal como acontece quando conversamos com alguém desconhecido e, por algum motivo misterioso, nada parece novo.


“Nothing Matters” tem um dos refrãos mais reverberantes que ouvi nos últimos tempos: ouvimo-lo e automaticamente sentimos a comunhão familiar que é estar num concerto a gritar um refrão em uníssono com uma quantidade incompreensível de pessoas que nunca vimos na vida. Entra-nos no ouvido e fica, muito depois de a melodia ter parado e de a voz de Morris se ter dissipado.


Foi com grande antecipação que se esperaram os próximos passos e pratos desta dinner party – referência possível à obra de Judy Chicago, que chamou a atenção para o apagamento histórico da existência feminina, desde a pré-história até ao momento da obra, concluída nos anos ‘70. Herdeiras deste movimento de reivindicação e empoderamento das mulheres, as inspirações em figuras femininas históricas e poderosas ecoam por todo o álbum, tal como Chicago pretendera fazer: ouvimos influências de Florence + The Machine, Fiona Apple, Kate Bush ou Lana del Rey. Como a Pitchfork resumiu, é “Taylor’s “The Man” but make it Emily Dickinson”. O espetáculo visual é para elas tão importante como a experiência auditiva, e a imagética tem, até agora, rondado a ideia de um banquete orquestral, bíblico, monumental. Gótico, barroco, celestial. Basta-nos olhar para a capa de Prelude to Ecstasy ou ouvir a faixa introdutória para compreender isso. Apresentam-se à moda vitoriana, como se saídas diretamente do Marie Antoinette (2006), de Sofia Coppola, cruzando-se com representações de mulheres renascentistas. Brincam com os períodos da história e com as noções de género, abrindo o horizonte para o que é possível, para o que é interessante de ver e ouvir.


Além do ambiente simultaneamente feminino e gender-nonconforming que estabelecem, também o que nos dizem nas suas músicas nos remete para a experiência conflituosa que é nascer mulher, o que vem depois disso e como podemos desconstruir não só esse conceito, mas também todos os estereótipos e preconceitos a si associados. Em “Caesar on a TV Screen”, fazem uma poderosa interpretação do que seria ter o poder de um homem (lá está o motivo swiftiano): “I know that I can / See myself as a man / When I put on that suit / I don't have to stay mute / I can talk all the time / 'Cause my shoulders are wide” – ao contrário das mulheres, a quem é frequentemente dotado o espaço reservado do silêncio. Mais tarde, em “Beautiful Boy”, explicam que “What I'm feeling isn't lust, it's envy / He has the Earth, makes love to her to spite me”. O aterrorizante verso “Here comes the feminine urge, I know it so well / To nurture the wounds my mother held” relembra-nos o inescapável ciclo de dor, exclusão, incompreensão femininas ao qual, aparentemente, talvez possa ser possível escapar, curando e honrando gerações anteriores. Como se as TLDP estivessem a dar vida a mulheres da História que, por um motivo ou outro – sempre patriarcal –, não puderam atingir o seu potencial máximo: Cleópatra, a rainha Maria Antonieta, Emily Dickinson, Virginia Woolf, a princesa Diana (todas referidas, num momento ou outro, por membros da banda).


A sexualidade é outro tema evocado durante grande parte do álbum e dominado pelas integrantes da banda. “My Lady of Mercy” é uma bela ode à atração sáfica, recheada de referências religiosas que em nada contrariam o teor sexual da letra; pelo contrário, parecem complementá-lo: “Picture me in bed under your crucifix / Under your long black hair / I'll see you on Sunday.” O verso “And I will fuck you like nothing matters”, que se canta a altos berros em “Nothing Matters”, assinala esta necessidade de desconstrução de imagem da mulher que, anormalmente, é quem aqui domina a relação de poder sexual. Em “Burn Alive”, Morris canta “I'd break off my rib / To make another you”, jogando com o mito da mulher primordial, Eva, que teria sido criada a partir da costela de Adão. TLDP vieram para dizer que, afinal, podem ser elas a organizar a festa, a gritar, a vestirem-se como querem e a dizerem o que querem.


Embora The Last Dinner Party nos tenha preparado uma refeição completa, parece faltar algum ingrediente secreto na receita. O ecstasy que anunciam no título não parece chegar até nós, apesar de todos os momentos musicais mais que dançáveis e de catártica libertação moral – fizeram-nos acreditar que tudo é possível. Mas chegamos ao fim à procura de mais, a querer mais, a pensar no que ficou por dizer. Talvez isso não seja propriamente negativo e um dos objetivos tenha sido criar um prelúdio para o que têm para dizer, como as próprias parecem ter indicado. De qualquer das formas, cá estamos para lhes dar voz e, a uma semana do Dia da Mulher, relembrar da importância de ouvir mulheres e escrever sobre mulheres, deixando-as falar por si.

 

 

The Last Dinner Party tem a sua estreia em Portugal marcada para o Primavera Sound Festival, no Porto, de 6 a 8 de junho de 2024.

 



1 de março de 2024

Maria Beatriz Rodrigues



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