top of page

Cassandra Jenkins: a introspeção em “Hard-Drive”

6f5c06b1-cb90-4b11-93e7-5450958e2fe4.jpg

Depois do lançamento de “Play Till You Win” em 2017, a música nova-iorquina Cassandra Jenkins colocou a chave na ignição e lançou “An Overview on Phenomenal Nature”, no passado mês de fevereiro. Ao longo da meia-hora que perfaz o seu segundo álbum de estúdio, lançado pela editora Ba Da Bing!, Jenkins relata o luto por David Berman, líder de Silver Jews (projeto no qual se fazia acompanhar pelos colegas da faculdade Stephen Malkmus e Bob Nastanovish, dos Pavement), que se suicidou em agosto de 2019, dias antes do concerto de estreia de Purple Mountains – banda que juntaria Cassandra Jenkins e David Berman em palco, caso Berman não tivesse falecido.

Para além da presença fantasmagórica e constante de Berman na lírica da compositora – na balada “New Bikini”, por exemplo, Cassandra Jenkins alude à morte do amigo explicitamente nos versos “After David passed away / My friends put me up for a few days / Off the coast of Norway / And every morning they would say / Baby, go jump in the ocean / It's cold enough to get your blood moving / The water / It cures everything” –, Jenkins canta também sobre o que aprendeu ao ouvir os outros: os estranhos com quem se cruzou e os seus amigos, que a ajudaram e que por ela foram ajudados. Extremamente comovente e pessoal, “An Overview on Phenomenal Nature” está recheado de canções íntimas e singulares, meticulosas na sua melodia jazzy e na poesia e soberbas no seu conjunto.

Não obstante, a canção “Hard Drive” merece o holofote: a canção começa com o que parece ser um fragmento de conversa (“So these are real things that happened / Where you can apply these, these, um, important concepts / And understand that / When we lose our connection to nature / We lose our spirit, our humanity, our sense of self”), tornando visível a importância da natureza não só para superar o luto, mas também para nos reencontrarmos quando nos perdemos. É impossível não referir a ode que é feita ao mar em canções como “New Bikini”, onde a água parece ser o elemento chave para a cura, “The water, it cures everything / Yeah, the water, it cures everything”, como se nela residissem efeitos medicinais. No segundo seguinte, a voz doce e serena de Jenkins guia-nos pelo resto da canção através do relato detalhado de múltiplas interações. Várias entidades são mencionadas; é curioso pensar que a maior parte delas são completos estranhos. No tema “Crosshairs”, Jenkins canta: “All I want is / To fall apart / In the arms of someone entirely strange to me / In your eyes / I see the panoply / Of the people inside me”, o que me quer parecer que conhecer um estranho a leva a analisar, introspetivamente, a miríade de pessoas que estiveram presentes na sua própria construção identitária ao longo da vida.

A primeira pessoa com quem se cruza é a segurança de Queens, “A security guard stopped me to offer an overview on phenomenal nature / She said, "Sculpture is not just formed from penetration / You see, men have lost touch with the feminine / And with her pink lipstick / And her Queens accent / She went on for a while about our president”"; de seguida, o som do saxofone, da guitarra (que me recorda o tom nostálgico de American Football) e da batida lo-fi da bateria misturam-se de forma orgânica, à medida que Jenkins declama os seus versos, para começar a cantá-los apenas no início do refrão. A segunda personagem, o livreiro, é evocada e Jenkins recorda carinhosamente a conversa entre os dois: “I asked the bookkeeper / At the Inn of the 7th Ray / To tell me what he knew about Saint Germain / And he told me about chakras and karma and the purple flame / The birth of the cosmos / The ascended masters and the astral plane”. A referência a Saint Germain parece-me extremamente interessante pela sua ambiguidade: não sabemos se Jenkins se refere ao bairro na margem esquerda do rio Sena ou se se refere ao Conde de St. Germain, personagem misteriosa do século XVIII, associada à ciência, à arte e admirada pela sua misticidade; a conversa prolonga-se, passando até pela astrologia e pelo cosmos, para rematar com aquilo que viria a ser o título da canção e o refrão: “He said, "You know the mind / The mind is just a hard drive / In this life / The mind is just a hard drive"”. Cantada pela delicada voz de Jenkins, a observação feita pelo livreiro sobre a psique humana é, diria, deveras consensual. A associação entre a nossa psique e os obstáculos numa viagem de carro parece-me brilhante. Tal e qual como a nossa psique, é impossível conhecer a estrada que percorremos (e as estradas pelas quais teremos que passar); o mesmo se aplica à realidade exterior ao condutor-e-o-seu-carro porque não é possível prever o comportamento dos outros condutores e controlar aquilo que nos rodeia. O timing da associação não poderia ser mais pertinente; afinal de contas, “Darryl's been teaching me to drive / I finally got my license when I was 35 / Speeding up the west side / Changing lanes / He reminds me to leave room for grace” - a terceira personagem no enredo, familiar e amiga, percebe que algo não está bem e pergunta: “You seem a little on edge / Are you always this nervous?". A quarta e última personagem - à semelhança de Saint Germain – transparece uma aura transcendente (“Her gemstone eyes caught my gaze”), através da qual parece captar, como se de uma sonda se tratasse, o sofrimento pelo qual Cassandra Jenkins passou,“She said, "Oh, dear, I can see you've had a rough few months"”, para logo a seguir a tranquilizar: “But this year, it's gonna be a good one / I'll count to three and tap your shoulder / We're gonna put your heart back together / So all those little pieces they took from you / They're coming back now / They'll miss 'em too / So close your eyes / I'll count to three / Take a deep breath / Count with me". O último segmento da canção é excecionalmente comovente e sublime. A poesia e a melodia de Jenkins levam-me a crer que “Hard Drive” é, incontestavelmente, uma das melhores canções lançadas em 2021.

Catarina Fernandes

Título do álbum: “An Overview on Phenomenal Nature” Título da canção: “Hard-Drive” Ano de edição: 2021 Editora: Ba Da Bing! Duração: 31:44 minutos Palavras-chave: “folk alternativo”; “jazz”; “David Berman”.


CONTACTOS

  • Facebook
  • Instagram
  • YouTube
  • Spotify
Os textos, artigos e imagens publicados neste website são propriedade exclusiva dos seus autores.
Para citar qualquer um dos elementos referidos dever-se-á indicar o nome do/a autor/a, o título do texto e de qualquer outro elemento, e referir o nome do website onde se integram.
A cópia, modificação, reprodução, distribuição ou outro uso desses elementos é interdita, salvo autorização expressa dos respetivos autores.
logo_final-removebg-preview_edited.png

Faz parte deste projeto enviando-nos uma mensagem!

Obrigado!

Obrigado pelo envio!

bottom of page