top of page

As estradas de Black Country, New Road

6f5c06b1-cb90-4b11-93e7-5450958e2fe4.jpg

O ano de 2023 já começou há mais de um mês, mas eu continuo a ouvir muito frequentemente aquele que foi, para mim, o melhor álbum de 2022: “Ants From Up There”, dos britânicos Black Country, New Road.


Originalmente um septeto, Black Country, New Road era composto por Isaac Wood (voz e guitarra), Tyler Hyde (baixo), Lewis Evans (saxofone e flauta), Charlie Wayne (bateria), Georgia Ellery (violino), May Kershaw (teclas) e Luke Mark (guitarra). Estes jovens juntaram-se para criar a sonoridade única que fez com que fossem apelidados de “a melhor banda do mundo” pela The Quietus em 2019, ainda antes do lançamento de qualquer um dos seus dois discos – foi graças às suas performances ao vivo que a popularidade disparou e o mundo da crítica musical começou a prestar-lhes atenção. A maioria dos membros tem formação musical, o que explica a facilidade com que desconstroem as convenções musicais e o que se espera da música. BC,NR (abreviatura bonita para um nome de banda com uma vírgula) é post-punk, jazz e rock experimental, mas também klezmer (música folclórica de tradição judaica) e krautrock (rock experimental alemão dos anos 60 e 70): muitas vezes, tudo isto dentro da mesma faixa. São letras inacreditavelmente lúcidas e acompanhamentos instrumentais genialmente planeados. Como referências, lembramo-nos dos conterrâneos black midi, Squid ou Ethan P. Flynn, mas pensamos também em Arcade Fire ou Slint, inspirações exemplares que se manifestam, inegavelmente, na discografia de Black Country, New Road. Esta sonoridade, aliada à técnica de sprechgesang de Isaac Wood (muitas vezes, ele canta como se estivesse a falar e/ou a gritar), garantiu à banda a sua veia fenomenal e majestosamente incomparável.


Apesar do primeiro longa-duração, “For the first time” (2021), ter representado o breakthrough grandioso de BC,NR, eu cheguei tarde à festa. De forma paradoxal, só os conheci depois de Isaac Wood, vocalista e principal compositor lírico, ter anunciado a sua partida. Apesar de isso ter acontecido quatro dias antes do lançamento do segundo álbum, BC,NR existe, no universo de muitos de nós, ancorado na memória de Wood enquanto voz principal da banda, visto que ainda não foi lançado nada em estúdio desde aí. Sim, no Youtube encontram-se concertos que foram dando ao longo de 2022, em que não tocam músicas dos seus dois álbuns (recusando fazê-lo sem Isaac), mas composições novas e covers – depois de ouvir a versão deles, é impossível sentir “Happier Than Ever” sem pensar em BC,NR. Mas estes fragmentos sabem a pouco para quem conhece “For the first time” e “Ants From Up There”, composições perfeitamente imperfeitas e repletas do que nelas há por descobrir.


Tal como o disco de estreia, lançado quase exatamente um ano antes – ambos em fevereiros, pela editora inglesa Ninja Tune –, também o segundo álbum inicia com uma faixa instrumental. No entanto, essa “Intro” tem menos de 1 minuto, servindo apenas como abertura orquestral ao que se vai seguir; pelo contrário, o álbum de estreia começa com uma “Instrumental” epopeica de mais de cinco minutos. Esta diferença entre as faixas de abertura dos dois discos parece espelhar a própria disparidade entre os mesmos. Enquanto “For the first time” consiste em músicas que já tocavam juntos ao vivo e decidiram compilar em jeito de introdução à banda, “Ants From Up There” surgiu num contexto completamente diferente. Depois da aclamação com a qual foram premiados após o lançamento do longa-duração de estreia, os sete músicos reuniram-se numa sala, ainda em período instável de quarentenas por COVID-19, e criaram música enquanto grupo de amigos. Em fevereiro do ano passado, Charlie Wayne, o baterista da banda, revelou, numa entrevista para o Jornal I: “(…) juntámo-nos numa sala e decidimos que apenas iríamos criar música para nós próprios. Foram sessões muito divertidas e interessantes porque não tínhamos que ter em consideração a nossa audiência.”


“Ants From Up There” apresenta-se tanto como seguimento do primeiro longa-duração, como própria reinvenção da banda. É um produto mais pensado, com faixas relacionadas entre si que funcionam ainda melhor no contexto do todo, conforme demonstra a segunda faixa do álbum, “Chaos Space Marine”: nos últimos três versos, referencia três outras do álbum, prelúdio do que virá a seguir. “Billie Eilish style” reaparece em “Good Will Hunting”, “A Concorde will fly” remete para a música “Concorde”, e “Ignore the hole I've dug again” inicia “Haldern”. Esta interligação entre as faixas revela a estratégia de uma banda mais coesa e madura desde o disco de estreia que, apesar de representar uma introdução perfeita à banda londrina, é um objeto mais disperso em termos estruturais. Em poucas palavras, BC,NR esmerou-se e superou as expectativas com o seu sophomore album.


Parece um disco demasiado íntimo para ser ouvido. Entramos no âmago confessional não só de Isaac, com o seu stream of consciousness e poemas não lapidados entoados num tom simultaneamente distanciado e exasperante, mas também de todos os outros músicos, cujos sentimentos mais recônditos ouvimos através das composições instrumentais altamente pessoais. É um caos controlado, que só se deixa antever em certos momentos (como é o caso de “Snow Globes”, em que encontramos uma desordem instrumental com início e fim nítidos), mas ouvi-lo é uma experiência caótica. Transporta-nos diretamente para o que significa estar na década dos 20 anos, um período da nossa vida em que as ansiedades e incertezas sobre o mundo parecem perenes (mesmo quando sabemos que não o são) e as relações permeáveis. Tudo isto mergulhado na herança zoomer, caracterizada por um hyperawareness do que nos rodeia e drasticamente influenciada pela era digital da qual não podemos fugir. As referências à cultura pop são várias, como as menções a Billie Eilish e o verso icónico “I have this dream about Charli XCX” (posteriormente eliminado de “Basketball Shoes”), e atuam como contextualização dessas experiências comuns a todos. Sentirmo-nos parte ínfima e insignificante de algo muito maior é transversal aos tempos, mas também o é a sensação de que, de certa forma, experienciamos estes sentimentos de forma coletiva. Somos, literalmente, formigas vistas de cima; só nos resta aprender a lidar com isso.


Se à primeira vista podemos tentar entender “Ants From Up There” através da lente empírica dos seus compositores, nas vezes seguintes torna-se muito mais do que isso. Facilmente afirmamos que se trata de um breakup album, fruto do final de uma relação amorosa (“I was made to love you / Can't you tell?”, canta um Isaac desesperado em “Concorde”). Afinal, há um número demasiado grande de pessoas que já sofreram da fatídica e casual ilusão de amor eterno nos primeiros momentos de uma paixão: “It’s just been a weekend / But in my mind / We summer in France / With our genius daughters now / And you teach me to play the piano”. No entanto, é impossível atentar na voz e letras de Wood sem pensar na saída que possivelmente já pensava levar a cabo (“So I’m leaving this body / And I’m never coming home again!”), e questionamo-nos frequentemente em relação a que esfera da sua vida o próprio se refere – “I know you're scared / Well, I’m scared too”.


Tudo culmina no que parece ser a obra-prima de Black Country, New Road: “Basketball Shoes”, a derradeira viagem do álbum. Doze minutos e meio cheios de tudo, várias músicas numa só, é a versão de estúdio de uma música que já era tocada pela banda em concertos desde os seus primórdios e sofrera várias alterações até chegar a “Ants From Up There”. A personagem que acompanhámos ao longo do álbum ergue agora a bandeira branca e aceita o que virá. O avião Concorde, figura central no imaginário do disco (escancarado na capa), destrói-lhe a casa no primeiro verso; o almoço que tentava terminar em “The Place Where He Inserted the Blade” está agora na lancheira (“And I'm feeling kinda normal with a packed lunch); e “Train rides don't hurt much these days”, ao contrário da aversão ao “a-thousand-mile-long tube” que demonstrara em “Concorde”. Apesar desta aparente conciliação com o que o rodeia, no final de contas não temos a certeza se se trata de uma aceitação passiva ou de um niilismo latente e contido. O clímax chega-nos no final da faixa, assim como o grito final de despedida de Isaac Wood: “Oh, your generous loan to me, your crippling interest”. Não sabemos a quem se dirige, a nós ouvintes, ao sujeito amado e/ou a ele próprio, quando fala do “generoso empréstimo” que lhe foi oferecido, mas que acarretou um “juro atroz”. Despede-se assim, tal qual Ícaro a lidar com as consequências de aflorar a genialidade, deixando-nos na boa companhia dos novos (ou reinventados) Black Country, New Road.


A saída daquela que foi a voz dos dois primeiros álbuns obrigou a uma reestruturação da banda. Afirmaram que querem democratizar as responsabilidades vocais e, acima de tudo, continuar a tocar. No Dia de São Valentim, decidiram presentear-nos com um vídeo publicado nas redes sociais a avisar de algo a chegar na próxima segunda-feira, dia 20 de fevereiro. Neste vídeo de menos de trinta segundos, ouve-se a melodia em piano de “Up Song”, uma das músicas não oficialmente lançadas que têm vindo a apresentar em concertos e que parece ser, por sinal, muito amada pelo público, que canta vigorosamente as linhas “Look at what we did together / B-C-N-R, friends forever”, em jeito de homenagem não só à banda, mas também a Isaac Wood. Até lá, ficamos à espera de novos desenvolvimentos do sexteto britânico e aguardamos, com entusiasmo, a estreia agendada e desejada da banda em Portugal, no festival Super Bock Super Rock, a 13 de julho de 2023.


Maria Beatriz Rodrigues



Palavras-chave: black country, new road; pop; post-punk; rock

bottom of page