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“New Ways”: no embalo de um mar melancólico

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Daughter é uma banda que, na minha opinião, dispensa apresentações, mas, para aqueles que ainda não encontraram a luz, permitam-me que faça uma pequena introdução: esta banda londrina, composta por Elena Tonra, na voz e guitarra, Igor Harfeli, no baixo, e Remi Aguilella, na percussão, encapsula perfeitamente a sonoridade indie rock tão popular da década de 2010.


Após o encontro de Elena e Igor no London's Institute of Contemporary Music, surge, em 2011, o primeiro EP enquanto banda, His Young Heart. Remi junta-se a Daughter ainda no mesmo ano, lançando outro EP, The Wild Youth. Ambos estes projetos foram laureados com uma avalanche de críticas positivas, levando, em 2013, ao lançamento do seu primeiro álbum, If You Leave. Este foi também um sucesso instantâneo e levou a banda numa digressão mundial, tocando em palcos de renome como o Glastonbury Festival, algo invejável para qualquer músico e sobretudo para uma banda com apenas 2 anos de existência. Daughter consegue atingir um balanço perfeito entre letras pungentes e instrumentais etéreos, criando um produto que nos transporta para uma outra dimensão flutuante e que nos convida a uma introspeção profunda.


Em 2016, surge o segundo álbum da banda, Not to disappear, onde se denotam novos riscos e novas sonoridades, apresentando aos seus ouvintes um novo mar de sentimentos para se submergirem. O álbum abre com a canção "New Ways", chegando finalmente ao assunto deste artigo. E que maneira mais fantástica para fazer a introdução do novo projeto senão com esta canção. Logo desde o início notamos um som sombrio, com recurso a sonoridades mais abstratas, um pouco em oposição aos seus trabalhos anteriores que eram fortemente marcados por um carácter acústico, nomeadamente pela presença frontal da guitarra. A canção começa suave, com o uso deliberado da percussão, que viaja entre os nossos ouvidos e ecoa com o gotas de água que caem lentamente, e destaco o trabalho de produção fantástico que introduz sons deslizantes, num jeito semelhante a colocar a cabeça debaixo de água. Estes são sucedidos por uma melodia grave e sedutora na guitarra, naquele que considero um abraço que nos conforta cada vez mais a cada segundo que passa. A voz hipnotizante de Elena surge muito sorrateira, misturando-se perfeitamente com a guitarra e sobrepondo-se aos poucos: "Oh, I need, I need new ways / To waste my time, I need new ways". Nesta primeira estrofe, o sujeito poético fala-nos de depressão e melancolia, de uma procura incessante por algo novo que preencha os seus dias que não o conhecido sentimento de monotonia. A harmonia forma-se naturalmente e a música vai gradualmente ficando mais alta até que, num movimento repentino que antecede o refrão, entra a guitarra elétrica com toda a força, mantendo-se como elemento frontal. Este momento instrumental antes do refrão é libertador e atinge-nos em ondas, numa sensação que apenas consigo comparar a deitar na areia e sentir o mar avançar e recuar.


Todas as comparações com a água que fiz até agora alinham-se na perfeição com a letra, quando a ouvimos juntamente com o instrumental de um modo mais atento, nomeadamente o recurso à expressão "washed out", que pode querer dizer não só deslavado como também "washed out (to shore)", ou seja, arrastado para terra pelo mar; também no movimento de libertação do instrumental que acabei de mencionar anteriormente conseguimos ouvir o som de gaivotas algo distorcidas, para além dos movimentos ondulatórios do instrumental, cimentando, para mim, a canção como uma balada "marítima". Quando a voz entra no refrão, esta surge apenas acompanhada pelo baixo e uma percussão leve, que lentamente se desenvolve e se mistura no final do verso. A voz repete as mesmas palavras incessantemente, formando quase um cântico, que serve para pano de fundo dos versos principais. O refrão continua a pintar os sentimentos de tristeza e repetibilidade do estado depressivo do sujeito poético, adicionando uma aura trágica à canção com versos como "Find a subtle way out / Not just cross myself out / Not just disappear", onde vemos a luta para evitar um fim precoce, coexistindo simultaneamente com a recusa em abandonar este estado de espírito , simplesmente pela sua familiaridade (presente nos versos "I've been trying to stay out / But there's something in you / I can't be without / I just need it here"). A guitarra passa novamente pelo solo, com uma sonoridade cada vez mais distorcida e distante, ofuscando ocasionalmente a voz, mas que no final a abandona mesmo antes da conclusão da canção. A concluir a faixa temos novamente o mantra "I need new ways / To waste my time", numa repetição alusiva ao sentimento recorrente que acompanha estados depressivos, de que cada dia é igual ao anterior e uma premonição do seguinte, ilustrando este vazio a um nível subconsciente para o ouvinte.


Em parte alguma da canção é referido especificamente aquilo que poderá ter causado este estado emocional , havendo apenas referência a um "you" nos versos "I've been trying to stay out / But there's something in you / I can't be without / I just need it here". Se por um lado podemos interpretar o significado da letra através do prisma de desconsolo amoroso, causado pela dificuldade de seguir em frente depois de uma separação, existe outro significado que emerge quando observamos a música por um ponto de vista introspetivo. As menções de sujidade, apatia e o desejo de arranjar "new ways" de desperdiçar o tempo apontam para uma depressão que não tem necessariamente a ver com um "tu" físico e presente, mas um "tu" que o sujeito poético cria figurativamente e discrimina como a sua razão de falhanço perante a vida. Passa de uma obsessão e recusa de separação do objeto de afeto para uma confissão de um estado mental instável e depressivo. A obsessão não é com alguém, mas com o próprio, que deixou de ser capaz de sentir algo para além da sua tristeza e é lentamente consumido pela sensação de familiaridade que é sentir-se triste; o sujeito poético reconhece que o sentimento o corrói por dentro, mas prefere ser desfeito por algo que lhe é familiar do que se sujeitar a novas formas de dor, tornando-se em si mesmo um vício. Daughter consegue, deste modo, a partir de letra e sonoridades limitadas, construir e aludir a um vasto leque de sentimentos, criando uma “tempestade perfeita” de emoções.





Patrícia Moreira



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