"Since I Left You”: uma obra-prima de colagem
Estamos no ano de 2000 e, em breve, o álbum de estreia da banda de música eletrónica australiana The Avalanches estaria nas bocas do mundo, não só pela sua sonoridade distinta, como também pelas inúmeras versões do álbum, resultado de várias questões legais relacionadas com direitos de autor. Mas antes de começarmos a falar sobre este disco, é necessário entender o porquê de Since I Left You se inserir num género denominado sampledelica.
Sampledelica vem da junção dos termos sample e psychedelica e caracteriza-se pelas suas propriedades psicadélicas, desorientadoras e repetitivas, devido ao uso de samples – o material base deste género – que são porções de gravações reutilizadas numa gravação diferente. Estes são então transformados através de diversas técnicas, como por exemplo chopping (corte da gravação em pequenos segmentos), looping (quando o sample é repetido logo a seguir à sua reprodução, num ciclo), stretching (aumentar ou encurtar o tempo da gravação sem que altere a altura do som) , entre outros, e inserindo-os numa nova música, dando origem a um ato harmonioso de colagem e composição.
O problema de música que se enquadra em géneros como sampledelica é a difícil obtenção das permissões legais para a utilização de material de outras pessoas, sendo um processo que se pode estender por bastante tempo devido às inúmeras pessoas/entidades que detêm direitos de autor sobre uma canção. Foram utilizados entre 900 e 3500 samples neste álbum – a utilização intensiva desta técnica não seria, inicialmente, um problema para o grupo australiano, pois não planeavam um lançamento internacional, o que significaria que não teriam de lidar com as diversas leis de copyright que variam de país para país. No entanto, a crescente popularidade de Since I Left You acaba por resultar num lançamento para além da Oceânia, o que fez com que muitas das faixas tivessem de ser regravadas para que pudessem ser publicadas sem problemas legais, criando várias versões diferentes das mesmas canções e, consequentemente, do álbum. Não só a amostra significativa de samples causava estes entraves ao lançamento do álbum devido às inúmeras autorizações necessárias, mas também a falta de registos fiéis em relação a que samples foram usados dificultava perceber junto de quem obter as ditas licenças.
Independentemente de questões burocráticas, os produtores e membros do grupo The Avalanches Robbie Chater e Darren Seltmann lançam um disco que pretende destacar-se pelas suas inspirações retro, como Beach Boys, numa reação à música de dança eletrónica da altura, que se caracterizava por uma grande produção e ênfase na secção rítmica. Ao ouvirmos Since I Left You, somos levados por um oceano de diferentes sons, todos tecidos entre si para formar uma mistura memorável: numa experiência equiparada a dar um passeio na rua de ‘fones’ nos ouvidos, capturando perfeitamente a envolvência do quotidiano no mundo musical.
A sonoridade é um pouco atarefada à primeira escuta, há sempre algo de novo a acontecer e sons que não estamos à espera de encontrar juntos sobrepõem-se, para criar novas sensações: gravações de conversas, transmissões de rádio, programas de televisão, porções de música ou o canto de pássaros são apenas alguns exemplos. As proveniências dos samples são variadas, muitas vezes escolhidos pela sua obscuridade, sendo quase um jogo entre os membros da banda: encontrar música e outros materiais para usar como fonte de inspiração e criação, quanto menos conhecidos melhor. Existem samples que ocorrem mais que uma vez no álbum, como a canção “Oh oh chéri” de Françoise Hardy, aparecendo nas faixas “Summer Crane” e “Extra Kings”. A seleção de material a usar no álbum acaba também por seguir uma lógica nostálgica, evocando pedaços de memória de ouvintes que reconhecem os samples, algo que é conseguido, por exemplo, na canção “Close to You”, que utiliza porções de canções da aclamada série infantil Rua Sésamo.
Tudo isto se juntou para criar um álbum verdadeiramente memorável e bastante diferente daquilo de que estamos à espera quando pensamos em música de dança eletrónica da década de 2000. As batidas adquirem um certo groove em determinadas faixas do álbum, como “Live at Dominoes”, mas temos também exemplos de canções mais “calmas”, como “Tonight May Have to Last Me All My Life”, que dá mais ênfase a elementos melódicos e vocais, com uma batida mais despercebida, e canções com características mais psicadélicas e surrealistas, como “Frontier Psychiatrist”. Em suma, um álbum com grande variedade e mestria, já para não mencionar originalidade, algo que pertence à lista de requisitos de qualquer pessoa que aprecie música eletrónica, música que utilize sampling ou que goste simplesmente de uma audição diferente para refrescar o palato musical.
Patrícia Moreira
Palavras-chave: música eletrónica; sampling; sampledelica